As duas faces de uma mesma energia

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As duas faces de uma mesma energia

Ao longo desses anos de convívio com crianças observamos um caminho interessante percorrido por elas em direção a ampliação do seu espaço vital que gradativamente irá se traduzir na conquista de sua autonomia.

A Escola que atende crianças na primeira infância se depara constantemente com indagações dos pais sobre o processo de desenvolvimento de seus filhos, buscando respostas que os façam acompanhar a dinâmica do crescimento fantástico que se opera nos primeiros anos de vida de uma criança.

Em primeiro lugar é preciso reconhecer a presença de uma energia expansiva que é um componente inato de nossa constituição biológica, sendo uma parte essencial de nosso equipamento instintivo humano. É ela a força que impele a semente a germinar e que nos, impele, como seres humanos, a lançar mão dos gestos que afirmam a nossa identidade.

Esta energia natural brota de uma tendência inata, para o crescimento, para expansão, para relacionar-se com a vida, o que parece ser uma característica de toda a matéria viva e nos dota da vontade de desenvolver o que somos e o que podemos vir a ser. Chamamos a isto de pulsão expansiva, muitas vezes, identificada com agressividade que não é necessariamente destrutiva. Para o psicólogo Winnicott em sua origem a agressividade é sinônimo de atividade.

É importante sabermos que há um lado saudável dessa forma expansiva em ação, aquela que aparece como uma força profunda em nosso interior, impulsionando-nos para adquirirmos novas habilidades, para ampliarmos nosso espaço, relacionando-nos com o mundo a nossa volta.

Quando esta pulsão de crescer, de progredir e de nos mover para frente é impedido, ela pode originar impulsos que manifestam birra, raiva, rancor, fúria, enfim, uma gama de gestos que podem ser entendidos como resultantes de movimentos bloqueados. Uma vez interrompido o fluxo dessa pulsão de vida ela pode se apresentar como uma ação cega e destrutiva, ou pode ser uma maneira de afirmação da existência individual seguindo a verdade do próprio ser.

Todos nós precisamos encontrar canais positivos e construtivos para nossos instintos e para a nossa necessidade de nos relacionarmos com a vida em busca do desenvolvimento de nossas potencialidades.

Nós, seres humanos, nascemos ainda incompletos e precisamos dos cuidados das mães por um tempo muito maior do que os demais mamíferos. Originalmente estávamos ligadas ao seu Corpo e, mesmo depois do nascimento dependemos dela para nossa sobrevivência.

A criança nasce em estado de profunda relação de Unidade- o EU e o MUNDO- que num primeiro período é representado pela Mãe, formam um Todo. Não há dualismo entre sujeito e objeto nessa relação. Eles são UM.

A criança nos seus três primeiros anos de vida vai passando gradativamente por uma fase de diferenciação dessa matriz materna, em direção à estruturação do seu EU que vai se definindo a medida que a criança amplia o seu espaço existencial.

Uma criança saudável está em movimento constante e imprevisível. Ela vê um objeto que lhe chama atenção e imediatamente, pega, gira, põe na boca, bate no chão, explora de todos os lados e depois o abandona e segue em frente. A criança não permanece muito tempo sentado nem se concentra mais do que alguns minutos com um brinquedo. Ela está continuamente explorando o mundo a sua volta, querendo saber o que cada coisa faz e como cada coisa é.

O que ocorre é que a criança se expressa essencialmente pelo corpo e busca satisfação de suas necessidades por intermédio de sua capacidade motora que ela em si mesmo desafia a cada instante. Esta é sua linguagem de conhecimento: o Brincar. A natureza dotou a criança desse movimento expresso pela experiência motora concreta. Por isso é inútil querer impedir uma criança de se movimentar e explorar seu entorno. Seu processo de conhecimento do mundo se dá a partir dessa exploração concreta que é movida por essa força inata para o crescimento, para os deslocamentos cada vez mais amplos de seu espaço vital.

Aprender a engatinhar e depois andar e em seguida falar são atividades que iniciam o processo de afirmação da criança na sua conquista diária de ampliação de seu espaço, produzindo um movimento gradativo de afastamento da sua relação simbiótica com a mãe.

Nesse período reações agressivas podem surgir na relação da criança com sua própria mãe, quando o processo de diferenciação EU-CORPO vai prosseguindo na sua trajetória para conquistar uma maior iniciativa em direção à autonomia.

Esses passos para independência vão sendo acompanhados de um desenvolvimento da VONTADE, isto é, do núcleo desse EU em formação que vai ocupando espaço e que no confronto com as vontades não atendidas faz emergir reações com intensidade proporcional à pulsão expansiva ali existente. Em cada criança esta pulsão pode se manifestar com intensidades variadas.

Quando esse EU-CORPO passa a conviver com o processo de separação do mundo representado pela simbiose com a Grande Mãe personificada pela mãe biológica, surgem dois desejos básicos e contraditórios que estão presentes no período da Infância: ao mesmo tempo em que há o movimento em direção a progressiva e gradativa existência em busca da independência e descoberta de sua identidade, há, também, o desejo de se voltar para a mãe e recuperar aquele estado paradisíaco, de pura unidade, que conheceu antes do período em que houve a separação, fazendo emergir o medo da própria separação. Este sentimento conflitante passa a ser a força condutora do desenvolvimento subsequente, podendo ocorrer pequenas regressões que se manifestam sob a forma de uma volta a hábitos de fases anteriores. Durante certo tempo a criança corre em busca do apoio materno ao menor sinal de qualquer problema.

Todos nós vivemos sobtensões que nos impulsionam para o crescimento, para ampliar nossos espaços e nos tornarmos independentes e ao mesmo tempo, as necessidades de segurança, de proteção, nos levam a permanecer estagnados, preservando os espaços conhecidos porque estes são merecedores de nossa confiança. Em nosso íntimo talvez exista o impulso que nos leva a desejar permanecer sob a proteção materna e não crescer jamais.

Comparados com outros mamíferos, muitos indivíduos nunca conseguem se livrar da relação simbiótica, levando para toda a vida uma contínua atitude de transferir-se para outra pessoa, sendo fundidos e possuídos por alguém ou por algo em que ele projeta sua segurança.

A mãe ou o pai que protege o filho em demasia impede-o de se desenvolver como uma pessoa que possui individualidade e está vivendo um processo legitimo em busca de sua identidade própria sem a qual não se diferencia do outro e passa a vida numa relação de dependência com o mundo externo. Quando a criança sente este aspecto excessivamente protetor ela pode crescer pensando que a autoafirmação, a independência é um desvio. “É como se disséssemos para a criança: você não é capaz de fazer as coisas por si mesmo, portanto precisa que lhe digamos o que fazer”. Dessa forma, a criança cresce sentindo-se desamparada e, a partir daí, pode emergir uma grande hostilidade em relação ao ambiente que a impediu de cres-SER.

Se por outro lado os pais atendem a todos os desejos das crianças, o filho pode crescer pensando que é onipotente, acreditando que a sua mínima vontade será atendida de imediato. Não se pode admitir que a criança cresça, acreditando que todas as suas vontades serão satisfeitas no exato instante em que ela deseja. Filhos de pais excessivamente liberais tornam-se crianças muitas vezes enfraquecidas pelo fato de não terem oportunidade de aprender a controlar seus impulsos rumo à independência. A sua força para conquistar a autonomia não exercida pode se voltar para dento dele próprio, resultando em sintomas físicos como, por exemplo, roer unha, arrancar cabelos, bater em si próprio ou se tornarem crianças de difícil contato.

Quando se trata de colocar limites para uma criança, é preciso equilíbrio e bom senso além da consciência de que há uma pulsão expansiva dentro dela em movimento, e a energia que impulsiona o crescimento, pode se manifestar em qualquer situação onde ocorra o impedimento de sua livre expressão. Variados tipos de birra, zanga, raiva e até mesmo agressão pode surgir cada vez mais sofisticada, como resistência a autoridade do pai e da mãe frente a um EU que está em processo de autoafirmação separando-se da Unidade anteriormente vivida.

Como dissemos antes a raiva é proveniente de uma limitação do fluxo da nossa energia. Fisiologicamente ela age no corpo acelerando batimentos cardíacos e adrenalina, aprontando o corpo físico para uma reação. Aumentar a tensão nesse momento agrava a situação. É necessário deixa-la expressar seu sentimento raivoso sem ficar carregando para si emocionalmente qualquer culpabilidade pelo gestual físico e verbal da criança. Essas situações nos pede para sermos continentes da zanga, da raiva, da birra de uma criança, buscando ajuda-la a fim de que a energia da reação agressiva não se volte para o seu interior, cristalizando-se sob forma de medo ou de um nó rígido e arraigado em seu intimo.

As reações de birra perdem o sentido se apesar do grito, do choro e dos argumentos os adultos não se mostram contrariados. Os limites serão conduzidos com mais tranquilidade se as crianças perceberem uma postura do adulto sem ansiedade. Isto permitirá a diminuição da força agressiva até o momento em que calmamente poderá haver uma conversa onde o adulto possa espelhar para a criança o sentimento vivido por ela na situação.

Na maioria das vezes, as dificuldades de acolhimento de um limite, uma regra, um não, são formas de chamar atenção sobre si, utilizando-se consciente ou inconscientemente dos aspectos que em geral são portadores de constante apreensão dos pais. As crianças intuem os pontos cegos dos adultos e é justamente nesses nós que atuam, como portadores de uma atenção sobre a tensão existente.

Cabem a nós, pais e professores desenvolver o discernimento sobre os assuntos onde a necessidade de dar um “NÃO” é inegociável. Há situações em que é possível criar regras previamente estabelecidas e, ao mesmo tempo, dar liberdade de escolha desde que a criança seja madura para assumir responsabilidade. Tão prejudicial quanto não impor nenhum limite é regular a vida das crianças em excesso e criar um padrão de comportamento muito regido pelos “NÃOS.

É através dos relacionamentos e dos vínculos principalmente afetivos, que a estruturação do EU da criança vai confrontando com os limites que brotam espontaneamente do contato com o outro, permitindo através da experiência concreta aprender, aos poucos, a controlar suas reações impulsivas. Aqui se revela o profundo significado da importância do Brincar na construção das relações de reciprocidade entre crianças de idades variadas, proporcionando o campo fértil para experimentação e estruturação de um EU saudável.

É, portanto, estes primeiros anos da vida de uma criança o período de aprendizagens significativas que se dão progressivamente durante a infância, exigindo do adulto o difícil exercício da paciência criativa. O núcleo instintivo do ser humano está em fase de expansão na criança e a passagem para outro estágio de desenvolvimento se dará na medida em que ela tem oportunidade de exercitar sua relação com o OUTRO.

O que vale no relacionamento é o vínculo de confiança estabelecida pela segurança das medidas claras que vão sendo colocadas para as crianças. Nada é mais valioso para a criança do que a atenção dos pais. O dialogo que se abre à compreensão e ao respeito entre pai e mãe, entre pais e filhos, entre alunos e professores é a melhor ferramenta para a construção de um relacionamento saudável.

Sabe-se que cada organização familiar tem suas caraterísticas pontuadas por valores e princípios próprios, entretanto, existem aspectos importantes para serem refletido pelos pais e educadores que poderão servir como elementos geradores de uma maior consciência das dinâmicas relações que se estabelecem entre o mundo da criança e do adulto durante os primeiros anos de seu desenvolvimento.

O bom relacionamento com os filhos e com nossos alunos é aquele que tem como base o amor e a confiança.

Esta é a intenção desse texto trabalhado através de leituras e reflexões desenvolvidas pela equipe da Casa Redonda. Buscamos constantemente através da observação e troca de experiências descobrir e compartilhar caminhos que sirvam para construção de relações mais sensíveis e saudáveis entre os seres humanos sejam crianças e ou adultos. Afinal, a busca de corretas relações humanas é o desafio de nossa espécie sem a qual a Humanidade não se cumpre.

Texto de Maria Amélia Pereira - Peo

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