Quem tem a chance de brincar certamente torna-se um adulto mais criativo.

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Quem tem a chance de brincar certamente torna-se um adulto mais criativo.

Continuação de Diálogo entre o escritor Flávio Paiva e a Peo.

Diálogo. Se o brincar socializa, ajuda na formação da sensibilidade, na preparação para a vida, na inserção da criança na memória coletiva, no experienciar a relação espaço e tempo, enfim, no desenvolvimento emocional, social, físico e mental, a que Estatuto pode se dizer que pertence a brincadeira?

Peo. Eu diria que a brincadeira pertence à dimensão do sagrado. O sagrado enquanto segredo, enquanto mistério da vida presente em cada ser humano que se inicia neste planeta. O brincar sagra a vida porque dá sentido ao que está sendo vivido. É a expressão livre, espontânea e imprevisível do humano. É o exercício de sua liberdade e, por isso, a seriedade do ato de brincar. O brincar é muitas vezes entendido como um tempo perdido, como um não-fazer-nada. Aí está um grande engano, pois brincar não é entretenimento. Brincar é um processo de conhecimento que se realiza dentro de um estado de alegria, pela característica da presença da liberdade que é própria dele. Não há um gesto do brincar que seja aleatório. Há sempre um significado profundo refletido no brincar, para quem aprende a olhar e escutar a criança. O ser humano nasce dotado desse recurso extraordinário de inaugurar a vida brincando, e essa inauguração é o que possibilita que ele se situe como um ser único e verdadeiramente humano. Schiller, um escritor alemão, diz que o “homem só é inteiro quando brinca, e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem”.

Diálogo. Temos no lúdico um elemento de ligação de todas as faixas etárias. Na infância, a ludicidade se manifesta naturalmente até que, a partir de certa idade, é posta de lado, por pressão dos padrões sociais estabelecidos. Estaria, assim, a brincadeira e o jogo na base de toda a experiência humana?

Peo. Digo sempre que o brincar é a iniciação humana ao processo criador. Quem tem a chance de brincar certamente torna-se um adulto mais criativo, porque tem em sua memória a presença da alegria. Gosto dos poetas porque eles me ajudam na compreensão do que seja o brincar. No poema O Guardador de Rebanho, de Fernando Pessoa, há um trecho em que ele diz: “Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas / No degrau da porta de casa / Graves como convém a um deus e um poeta / E como se cada pedra fosse todo o Universo / E fosse por isso um grande perigo para ele / Deixá-la cair no chão”. Está aí uma síntese extraordinária entre Deus, o Poeta e a criança brincando.

”Quem tem a chance de brincar certamente torna-se um adulto mais criativo, porque tem em sua memória a presença da alegria.”

Diálogo. A brincadeira também faz parte da vida das aves, dos peixes e dos animais. É bonito ver um gato, um cabrito, um pássaro, um peixe, enfim, os bichos brincando por instinto para aperfeiçoar suas habilidades. O que é que distingue a brincadeira de criança da brincadeira dos bichos?

Peo. Um macaquinho quando brinca com a macaca certamente está criando seus vínculos e aprendendo a se relacionar com os meios de sobrevivência de sua espécie. Assim como nos demais animais, instintivamente as aprendizagens para sobrevivência e seus vínculos são estabelecidos. Entretanto, o brincar humano traz uma nova complexidade que por certo extrapola a dimensão apenas instintiva animal. A criança humana é dotada de uma liberdade criadora que permite reinventar, a cada momento, as suas brincadeiras, o que se traduz na infinidade de movimentos de seus brinquedos, aspectos que têm a ver com a memória biológica e psicológica da espécie, assim como de sua hereditariedade. Mas a criança tem também a possibilidade intrínseca de poder dar, em qualquer momento, um salto novo na reorganização desses fatores genéticos, inaugurando novos “conseguimentos” na evolução do desenvolvimento humano. As brincadeiras das crianças se ligam a conhecimentos que extrapolam a condição dos animais, porque se inserem em conhecimentos que marcam uma história, no tempo e no espaço, de conquistas humanas, resultando algumas brincadeiras de vestígios de rituais e cultos vividos por outras gerações, que as crianças se apropriam como seus brinquedos. É o caso, por exemplo, da pipa, do pião e da perna de pau. Ao privar a criança das brincadeiras, a sociedade desloca também esse ser da sua ancestralidade. Essa memória está no corpo e uma vez vivenciada ela pode ser integrada de uma nova maneira. Todo menino pega num pedaço de pau e logo o traduz numa espada, em algo que o mobiliza para enfrentar o outro, seja numa briga real seja numa brincadeira. Atacar e defender são dois movimentos muito presentes nas brincadeiras infantis, principalmente dos meninos, e que reportam a vivências remanescentes, talvez, de um estágio de sobrevivência humana. Refazer este caminho pode ser uma das características das brincadeiras, além de expressar também o exercício de sua necessidade de contatar o outro, descobrir sua força, confrontar os monstros que ocupam o seu imaginário, expor-se a uma infinidade de situações através das brincadeiras. Nelas, os conflitos vividos passam a ser aprendizagens significativas que se incorporam como experiência no desenrolar do desenvolvimento infantil.

Diálogo. Assim como a brincadeira, a fantasia e o sonhar fazem parte do mundo da leitura, na infância. Muitas mães e pais têm procurado oferecer aos filhos, em casa, livros que orientam o entendimento, como acontece na escola. Esse é um bom caminho para a educação plena ou livro bom para criança é o que deixa que ela fique livre para entender o que quiser, o que estiver ao alcance da sua curiosidade?

Peo. Acredito que o melhor livro para criança é aquele que não é pensado para ela, mas o que expressa a relação do ser humano com o mundo na sua forma mais verdadeira. Observo hoje esta onda do politicamente correto na literatura infantil, como o mundo adulto trazendo mais um complicador para nossas crianças. Isto vem se fazendo, na maioria dos casos, sob uma forma literária reducionista, que além de empobrecer a infância com um conteúdo discursivo moralizador, abafa a possibilidade da criança de se apropriar do mundo que lhe está à volta, de uma forma direta e vivencial, permitindo a ela olhar o que lhe está do lado de fora, através de sua imagem interna, aquela que lhe dá as condições necessárias de elaborar a seu modo e dentro de suas possibilidades o que para ela tem significado para o seu crescimento. As crianças da Casa Redonda costumam pedir aos professores que lhes contem “historias de boca”, isto é, aquelas histórias que carregam um imaginário rico, porque pautado na experiência humana em sua essência.

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