“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse. F.Pessoa
-Vocês sabiam que Portugal, no início do século XVI, tinha um milhão de habitantes, enquanto o Brasil com seus diferentes povos de língua Tupi, Jê, Aruak, Karib e outros somavam seis milhões de pessoas aproximadamente?
Os povos Tupi, Aruak, Karib ou Jê ainda existentes no Brasil no final do século XX, têm uma história mais antiga do que a História da sociedade brasileira. Esses povos não tinham escrita, mas tinham uma cultura antiga bem estruturada e a jovem cultura brasileira, em sua lenta maturação, foi recebendo muitas influências dessas culturas de remotíssima procedência oriental.
Até o final do século XVIII, o tupi–guarani ainda era falado em São Paulo, e o Inheengatu ainda é falado por brasileiros em alguns municípios do Rio Negro, no Estado do Amazonas, no final do século XX.
A nossa matriz cultural é Ibérica, mas os portugueses do Brasil (ninguém se dizia brasileiro antes do final do século XVIII, todos se conheciam como “portugueses do Brasil”) tinham filhos com mulheres tupis ou africanas e eram as mães que cuidavam dos bebês mestiços, das crianças mestiças e dos adolescentes mestiços.
O Brasil foi se tornando no período colonial, uma terra com uma população mestiça enorme. Esta é uma das fontes de extraordinária energia psíquica dos brasileiros, cuja mentalidade foi sendo gestada em casas onde o Inheengatu e Tupi Guarani (ou uma língua aruak) eram faladas pelas mães, o dia inteiro.
O filho do pai português e da mãe tupi nascido em São Paulo no século XVIII usava quando sabia falar, a língua do pai - palavras portuguesas cujas remotas origens se encontram no latim e no grego, mas usava, também, palavras de origem tupi que nenhum habitante de Lisboa conseguiria entender.
Continuamos a usar estas palavras 300 anos depois, no Brasil inteiro: capim, urubu, caatinga, maracujá, ariranha, tatu, tamanduá, arara, caiçara, caipora, caju, cupim, jabuti, taquara, babaçu e outras tantas.
Usamos a língua portuguesa de forma tão livre e solta, no Brasil, que a cultura brasileira só podia ser sintetizadora, como de fato é.
Vernáculo quer dizer idioma próprio de um país, de uma terra, e isso, mais uma vez, reforça que o nosso vernáculo não é próprio da terra, é originário da Península Ibérica. O que nos distingue e singulariza não é falar o português castiço, é, na verdade, o formidável poder de síntese da cultura brasileira. O racismo e as forças desagregadoras da separatividade também atuam por aqui, mas, felizmente, as forças de atração, empatia e afinidade acabaram prevalecendo no século XX. Por isso não somos um aglomerado de guetos, mas uma grande síntese em andamento. A incompletude desta síntese torna tudo muito relativo, ambíguo e instável no Brasil, entretanto, percebemos que a solidariedade, a amizade e a cooperação têm muitas chances de vencer entre nós.
Às vezes os estrangeiros conseguem perceber qualidades do povo brasileiro que muito dos intelectuais brasileiros não percebem. Temos problemas sociais e ambientais gravíssimos neste momento, e a crise econômica é uma ameaça maior. Sobre isso estamos todos de acordo. Procurar soluções para estes problemas é tarefa prioritária. O Brasil não pode ser encarado apenas como fonte de recursos, fonte de matérias primas, local de investimento e especulação financeira. Ou, ainda, como cenário macabro onde inúmeras violências são cometidas contra menores abandonados, negros, trabalhadores sem terra, povos indígenas e favelados. O Brasil tem todos estes problemas, mas também tem autoestima suficiente para encontrar soluções para os mesmos. É importante lembrar sem nenhum ufanismo que essa autoestima não é fruto de nenhuma manipulação ideológica, ela decorre da própria história brasileira. História que foi gestada nas encruzilhadas e nos múltiplos caminhos que trouxeram a humanidade inteira aqui para esta terra, ao longo de intermináveis migrações históricas e pré-históricas.
Apesar de todas as nossas deficiências no plano político e de nossas fragilidades sociais, temos uma cultura que tem uma força inegável: adaptabilidade, facilidade para improvisar e encontrar soluções originais, admiração pelo novo, criatividade, esperança no futuro, alegria de viver, pronta disponibilidade para uma brincadeira e jogo.
Quem acha que estas qualidades estão homogeneamente distribuídas entre todos os países do planeta está muito enganado, ou nunca teve ocasião de viver fora do Brasil. Somos um país-encruzilhada, país-labirinto, país de migração, onde a intolerância e a rigidez existem, mas em proporções menores do que em outros países do mundo.
Num texto recente, Mia Couto, um importante escritor moçambicano disse: “Para quem viaja para perder-se de si mesmo e reencontrar-se no outro, o Brasil é o melhor destino que conheço. George Bush legitimou a guerra contra o Iraque com o fantasma das “Armas de destruição Massiva”. Pois o Brasil detém uma “Arma de Construção Massiva” que é a simpatia e a disponibilidade dos brasileiros. Não se trata de simpatia apenas no sentido do trato agradável, mas na capacidade de cada um ser todos os outros e deixar que esses outros façam morada em nós. Os brasileiros não são assim por natureza ou porque biologicamente são mais dotados que os outros povos. Esta capacidade foi historicamente criada ao se produzir uma nação que foi costurada entre culturas, religiões e etnias diversas. Falo do Brasil sem ter a ingenuidade de romantizar uma nação que é feita de contrates, de ambivalências e desigualdades. Os brasileiros têm esta tão feliz dificuldade de não pertencerem a uma identidade só. Cada brasileiro é o Brasil inteiro.” E aqui podemos completar que a capacidade de regenerar, por meio do entusiasmo e da arte de viver, não é um poder de dominar e sim um poder de vitalizar, que está presente na raiz de nosso povo tão pouco incorporado e compreendido pela maioria de nossa classe política.
Em qualquer sociedade do mundo, tanto a destruição quanto a construção estão igualmente presentes. Nesta sociedade desigual que contem, em seu interior, forças e elementos proporcionadores de cooperação, amizade, crescimento e solidariedade, existem também, simultaneamente, estruturas e instituições que incentivam e facilitam a exploração econômica, a fraude, as falcatruas, a falta de transparência, as agressões ao meio ambiente, os desequilíbrios sociais, o analfabetismo, a doença, o preconceito, o racismo. Assim podemos dizer que vemos o Brasil como um belo pássaro tentando levantar vôo com uma pedra amarrada nos pés.
Acreditamos, entretanto, que a cultura brasileira tem qualidades que dão força á aqueles que trabalham com Amor numa perspectiva de renovação social. É provável que o Brasil, com todos os problemas que possui, possa vir a ser, o país cujas múltiplas encruzilhadas culturais, onde são gerados os sonhos, anunciem uma fonte de carinho, entusiasmo e energia psíquica.
Vivemos numa linha fronteiriça da consciência, onde manifestações de dignidade e felicidade misturam-se às manifestações de crueldade e horror. Mas, a cada manhã, estamos mais perto do Sol, aprendendo a voar, apesar do baixíssimo nível da maioria dos nossos políticos.
Não somos um país lascivo, inquietante e exótico, como insinuam certas visões folcloristas de nossa cultura. Mas somos, isto sim, parte deste singular e originalíssimo fenômeno histórico - cultural que conseguiu dar alguma coesão para esta diversidade aqui acolhida ao longo desses séculos.
Aos autóctones de língua Tupi, Aruak, Jê e Karib vieram se misturar no Brasil, nos últimos 500 anos, congos, benguelas, cabindas, daomeanos, iorubás, açorianos, minhotos, algárvios, galegos, andaluzes, napolitanos, calabreses, sicilianos, toscanos, alemães, austríacos, ucranianos, russos, poloneses, finlandeses, japoneses, coreanos, chineses, tur-cos, sírios, libaneses, egípcios, gregos, ingleses, holandeses, franceses e milhares de pessoas de muitas outras procedências geográficas, linguísticas e religiosas.
Sempre que uma síntese se processa, o futuro passa a ser mais sedutor do que o passado, e então os hábitos anteriores não impedem mais o advento do novo.
Isto ocorreu e continua ocorrendo nas múltiplas encruzilhadas a que chamamos Brasil.
O aluno novo no Brasil já é menos ingênuo, menos doutrinário e mais inclusivo em sua consciência, isto é, menos propenso à separatividade.
Se as estruturas educacionais se renovassem nesse sentido, livres e responsáveis capazes de edificar uma civilização que não fosse fundamentada no frio cálculo egoísta e separatistas da mente concreta, objetiva e analítica, estariam diminuindo as disputas agressivas em torno de teorias diferentes e visões de mundo discordantes.
A amizade e a alegria são tão importantes quanto o “mais verbas para a educação”.
A educação não pode prescindir do Eros, do Amor.
Somos um país que lida, dia a dia, com questões altamente intuitivas e espiritualizadas, “como se tudo isso não fosse nada”.
Ou seja, gente que passeia seu espírito pelas estrelas com a mesma naturalidade com que os marinheiros portugueses, dos versos de Fernando Pessoa, passavam pela Patagônia, pela Austrália, pela África, pela Índia e pela China, “como se a vida fosse isso”, como de fato ela é.
História e sensibilidade são temas ainda pouco relacionados em nossa produção historiográfica.
A presença do oriente, por exemplo, foi tão sutil que muitos estudiosos de nossa cultura não perceberam sua existência. A sensibilidade do homem brasileiro do século XVIII, em Minas Gerais principalmente, não era mero “reflexo” do universo espiritual português da metrópole.
Sem deixar de ser basicamente português, esse brasileiro colonial era um português de ultramar, a meio caminho da Índia e da China e da África evidentemente, o que já implica maior sensibilidade para a forma de vida nos trópicos e uma visão do mundo mais aguda mais penetrante em relação às coisas e gentes dessas latitudes.
Talvez o ponto de partida para essa apreensão do mundo das idéias, ou do mundo do espírito, esteja contido nas sutilezas às quais o Oriente nos acostumou, através de sua presença discreta, manifestada em pequenos detalhes.
Em Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda, refere-se à presença do Oriente na arquitetura portuguesa, tanto na península Ibérica como no Brasil.
O Oriente é para o Brasil uma espécie de avô antigo, ancestral, que morava longe e só mandava noticias. Mandou mangueira para cá, mandou o gengibre, a cana de açúcar e os zebus, mas, principalmente do oriente incorporamos uma determinada maneira de ver o mundo através do devaneio, da imaginação, da fantasia, da fabulação mítica, do sonhar acordado, todos estes pré-requisitos da inventividade.
Um país com as características que possui o Brasil não pode nunca perder de vista seu passado histórico. Só olhar para o Norte tem sido um fator de limitação cultural para o Brasil. O Leste é tão importante quanto. Quem esquece ou reprime a lembrança de suas origens, de seus viajantes e visionários, corre sério risco de desagregação.
A cultura brasileira tem de evitar isto. Suas sutilezas - historicamente adquiridas - valem mais, muito mais, do que tudo que a modernidade lhe trouxe, como crescimento material, no século XX. Nos brasileiros a criatividade é um patrimônio histórico. A inventividade é energia psíquica em estado concentrado, é lava fervente de um vulcão cultural. É o único vulcão ativo em terras brasileiras: aquele que nos leva a inventar, permanentemente novas formas de viver.
Concluindo, nós brasileiros não somos nem Ocidente nem Oriente, somos uma maravilhosa síntese cultural em desenvolvimento que, para ser bem estudada, precisa de historiadores que tenham entendido a dissolução das fronteiras supostamente rígidas que, até ontem, nos separavam da nossa rota de sonho: lá onde jaz a aproximação dos contrários, a síntese dos opostos, na busca da unidade na diversidade, na qual a diferença possa ser admirada e a pluralidade não aceite hegemonias autoritárias.
Os setores explorados e excluídos do povo brasileiro vivem em situações dificílimas e a violência vem fazendo parte de nossa historia desde o século XVI. Não estamos esquecidos dessa ferida aberta.
Não se trata de inventar de novo a roda, diz Milton Santo, mas de dizer como a fazemos funcionar em nosso canto do mundo; reconhece-lo será um enriquecimento para o mundo da roda e um passo no conhecimento de nós mesmos. Ser internacional não é ser universal e para ser universal não é necessário situar-se nos centros do mundo, inclusive pode-se ser universal ficando confinado à sua própria língua, isto é, sem ser traduzido. Pensou-se que o global seria abarcativo, democratizante. Mas na prática atual, ao contrário do que se poderia sonhar, reduz ainda mais o escopo das trocas, abastarda as comparações e aprofunda a visão pragmática, na medida que convoca todas as forças a buscar um único caminho. Já o universal, que é independente de realizações práticas imediatas, é encontrado na busca de uma generalidade significativa e representa não apenas, as quantidades do mundo mais as qualidades e valores. Por isso, é abrangente de tudo e de todos, a despeito de hierarquia. Não se trata de dar as costas à realidade, mas de pensa-la a partir do que somos, enriquecendo-a universalmente com as nossas ideias; e aceitando ser, desse modo, submetidos a uma critica universalista e não propriamente europeia ou norte americana”.
Estamos sim, ressaltando a existência de outras esferas culturais construtivas em nosso povo, aquelas que podem nos salvar. Estes elementos oníricos, devaneadores, brincalhões e utopistas também não podem cair na esfera do esquecimento. “Chegaremos de mãos dadas, Tagore:
Cecília Meireles esteve na Índia em 1953, e aí escreveu versos que captaram, sob a forma de poesia, a beleza desses vínculos culturais e espirituais que há cinco séculos vem imantando as relações do mundo do Oriente com o mundo da língua portuguesa e dedicou um poema a Tagore, grande educador indiano, em que ela diz:
Ao divino mundo em que o amor eterno mora,
onde a alma é o sonho profundo da rosa dentro da aurora”.
Ninguém melhor do que uma poetisa poderia sintetizar a sutileza dessa presença do oriente no imaginário e sensibilidade dos brasileiros: “entre a morte e a eternidade, o amor, essa memória para sempre”.
Texto consultado, compilado e adaptado pela equipe da Casa Redonda do livro: “Os navegantes e o sonho” de Victor Leonardi, professor da Universidade de Brasília, professor visitante na Unicamp e na Universidade de Berkeley na Califórnia; o texto “Repensar o pensamento redesenhando fronteiras”, retirado do livro “Pensar Cultura – Serie Fronteira, Editora Arquipélago do escritor Moçambicano Mia Couto; e o trecho do texto “O Brasil distorcido” de Milton Santos importante geografo e pensador brasileiro.
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