Um toque de criança

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Um toque de criança

O que vamos ensinar são como sementes que vão caindo dentro de vocês. Elas se desenvolvem de diferentes formas dependendo do campo interno de cada um. Pethö Sándor

Os toques sutis, trazidos até nós por seu criador, o professor Pethö Sándor, em suas aulas no curso de cinesiologia do Sedes Sapientiae e nos grupos de técnicas de relaxamento no seu consultório, chegaram à Casa Redonda como uma experiência a ser vivida sobre a abordagem corporal na educação infantil. Foi através dos conhecimentos compartilhados em suas aulas que a noção do ser humano como unidade foi incorporada como experiência concreta e objetiva. Passei a compreender o corpo como um instrumento sutil, um lugar sagrado, continente de uma vitalidade e intensidade de vida interna. Um lugar sagrado que ora se manifestava de maneira silenciosa e contemplativa diante da natureza, sentindo e descobrindo seus ritmos, seus ciclos e sua beleza, ora se debruçava sobre o cotidiano como presença viva, ativa e constante impulsionando-me a olhar e escutar sensivelmente o mundo que existia à minha volta.

O trabalho iniciado com as crianças na Casa Redonda foi permeado por conversas contínuas com o professor Sándor sobre a necessidade de introduzir uma visão integral do ser humano nas escolas que ainda carregam uma noção fragmentada e mecanicista na condução de suas práticas pedagógicas com as crianças. Uma nova visão do corpo teria de ser abordada na educação infantil na medida em que as crianças representam o embrião humano em crescimento, seres que trazem, no mistério do seu nascimento, a questão ontológica da unidade entre o corpo e a alma, para alguns, e corpo e psique, para outros.

Iniciada por ele a ampliar o universo de minhas leituras até então focadas em Jean Piaget, entrei em contato com a bibliografia de Carl Gustav Jung e, a partir daí, fortalecida por outras leituras que ele nos propiciava, me entreguei à ideia de criar um espaço educacional fundamentando em sua prática, o crer-ser, isto é, a crença no ser humano como o mistério da vida em manifestação através de um corpo. Os primeiros passos já haviam sido dados, e imediatamente conectei as leituras com o que já vinha observando no contato diário com as crianças. Nelas vi a presença de um corpo que brinca e que, brincando se desenvolvia afirmando a relação de unidade entre o corpo e a alma ainda intacta, no aqui e agora, de sua relação com seu entorno.

Uma educação que privilegiasse a natureza como o chão da infância, afirmasse o brincar como o verbo que brota do corpo brincante das crianças e a presença de professores abertos ao desenvolvimento de um olhar e uma escuta sensível, constituíam o ponto de partida para darmos início às transformações que se faziam necessárias.

A leitura diária do universo das brincadeiras das crianças passou a ser uma prática constante, ampliando nossa capacidade de observação e nos fazendo perceber com mais detalhe os ritmos que o corpo das crianças naturalmente imprimiam em suas brincadeiras, ora com gestos mais amplos e expansivos, ora mais calmos e concentrados. Essa alternância veio se mostrando como uma qualidade natural do ser humano que, em suas experiências vividas com o corpo, aprende a escutá-lo e busca os caminhos para satisfazer sua necessidade sentida e expressa corporalmente.

Manuela, aos cinco anos, ia ganhar um irmãozinho. Embora convivendo diariamente com o crescimento da barriga da mãe, ela não comentava o fato do nascimento desse irmão. Na proximidade do sétimo mês de gravidez da mãe, ela chegava na Casa Redonda com sua mãe bastante barriguda, trazendo uma boneca e procurando um amigo para brincar. A brincadeira que ela desenvolveu com esse amigo, que aceitou naturalmente brincar com ela durante duas semanas, tinha a seguinte singularidade: ambos sentavam cada um num balanço e davam um jeito de segurar a mão da boneca iniciando simultânea e ritmicamente um movimento de se balançar. Entregavam-se a essa brincadeira isolando-se do que ocorria no entorno. Se outra criança pedia para se balançar, ouvíamos a voz dela firmemente respondendo: “Eu não estou ouvindo! Eu não estou aqui!”. Sua determinação fazia as crianças se afastarem e não insistirem mais. A repetição se deu durante aproximadamente duas semanas, com intervenções ocasionais dos professores para que ela cedesse espaço para outras crianças. Ela apenas respondia: “Eu não estou aqui! Você não esta falando comigo, você está falando com o vento, porque eu não estou aqui”. O companheiro permanecia ao seu lado em silêncio. Quando indagado ele respondia: “Ela está viajando”, e serenamente ali continuava participando da brincadeira.

Dado ao tempo continuado desse brincar, intuímos que algo especial poderia estar ocorrendo e nos dirigimos à mãe perguntando como estava sentindo sua filha em casa. Ela nos relatou que justamente nesse período estava transferindo a filha para outro quarto, uma vez que o seu quarto passaria a ser do bebê que chegaria dentro de dois meses.

Logo em seguida a essa informação, Manuela, já instalada em seu novo quarto, aparece numa manhã na Casa Redonda sem o boneco na mão e, no primeiro contato com os professores e as crianças, anuncia para todos: “Sabia que minha mãe vai ter um bebê? Eu vou ter um irmãozinho bebê!”. E nunca mais repetiu a brincadeira que significou para ela uma forma própria de elaboração dos novos acontecimentos que estavam a ocorrer em sua vida. Aprendemos com essa criança a lição de um corpo que, através de uma simples brincadeira de balanço, nos conduziu à consciência de sua maestria, em acessar recursos infinitos para buscar integrar situações conflitantes e encaminhá-las ao um processo de amadurecimento. A riqueza desse corpo que sabe brincar quando o deixam brincar vai muito além do que podemos imaginar, e as crianças são exímios portadores dessa extraordinária qualidade que é sua própria maneira de existir. Elas estão conectadas com o mundo através dos sentidos, que não são apenas receptores passivos aos estímulos externos.

A consciência humana se processa por uma consciência corporal, e acreditamos que o conhecimento e sua comunicação não são moldados apenas por palavras, conceitos e teorias. A observação constante da linguagem corporal e sensorial das crianças tem sido nosso instrumento silencioso e cuidadoso de percepção desse repertório imprevisível com o qual as crianças expressam e constroem sua relação com o mundo. Em situações em que as crianças se encontravam diante da possibilidade de usar tinta e pincel sobre o papel, era comum vê-las ampliar o papel no seu próprio corpo e movimentar o pincel de maneira suave em áreas que pareciam produzir uma sensação prazerosa pelo tempo que exploravam o corpo com o pincel e pela descontração de sua fisionomia.

Bastava uma criança começar essa experiência que imediatamente outras a seguiam no mesmo movimento, muitas vezes explorando outras áreas do corpo. Nas atividades em que utilizavam água e outros instrumentos para elaborar suas experiências misturando sabores, cheiros de flores e folhas, era comum, após a utilização dos conta-gotas para suas pesquisas, utilizá-los também para fazer gotas sobre os próprios dedos, mãos, braços e pernas, acontecendo a mesma concentração nos gestos e simultânea distensão do corpo, chegando muitas vezes a deitarem após a brincadeira. Bastava um dia de sol, um pincel na mão, e logo o corpo ocupava o lugar do papel, e a brincadeira se iniciava.

A princípio, o gesto é tímido e vagaroso, como se a mão estivesse percorrendo estradas desconhecidas. Suavemente, os movimentos vão se tornando mais amplos, e uma gostosa caminhada sobre o corpo envolve a criança no reconhecimento sensível de sua própria “casa”. Gestos espontâneos e simples criam os primeiros contatos. Deixada em seu próprio movimento, a criança experimenta essa brincadeira, e, através dela, a imagem do seu corpo vai se revelando. Assistindo por um período essas brincadeiras, vi na “entrega” das crianças às suas experiências com o corpo uma correspondência entre o toque suave que aplicavam com o pincel sobre elas próprias e a abordagem corporal dos “toques sutis” criada pelo professor Pethö Sándor. Foi na compreensão de que ambos, o professor Sándor e as crianças, falavam uma mesma língua, tocavam o mesmo instrumento, que me iniciei na aventura de fazer chegar até elas uma atividade que sabia que lhes pertencia pela profunda simplicidade dos “toques”. Sua qualidade de pertencimento a gestos elementares, primitivos, propiciam uma via de acesso direto ao sistema nervoso ampliando percepções que escapam ao plano racional.

Conversando com o professor sobre nossa observação de que a criança estaria já iniciada espontaneamente nos toques sutis, uma vez que utilizava com muita suavidade a ponta dos pincéis e as gotas de água sobre o próprio corpo, ele imediatamente reforçou a nossa observação. Afirmou que seria muito importante a aplicação dos toques sutis dentro de creches e escolas como um recurso de ajuda às crianças na autorregulação do seu tônus e harmonização do fluxo vital. Os toques sutis têm um alcance mais profundo e inauguram a experiência de suavidade nos relacionamentos, abrindo espaço para aprendizagens que as tornam mais confiantes.

Esses toques agiriam também como um elemento de “faxina”, na medida em que dissolveriam tensões recebidas do ambiente com o qual conviviam, já que ainda não possuíam recursos para uma elaboração consciente. Assim nasceu a introdução aos toques sutis no trabalho educacional da Casa Redonda, que se mantém até hoje como uma atividade que ingressa no repertório da cultura infantil, uma vez que essas abordagens corporais, ampliadas a partir da experiência das crianças e das nossas, foram sendo integradas naturalmente por elas como mais uma de suas brincadeiras a partir do corpo. A diversidade dos “toques” foi sendo incorporada de tal modo no repertório de brincadeiras das crianças que elas passaram a usá-los espontaneamente umas com as outras. Durante esses anos, vêm acontecendo contribuições das crianças, seja na criação de novos toques, seja na utilização de novos elementos para tocar o corpo dos seus companheiros. Pétalas de flores, folhas, penas, gotinhas de água ampliaram o repertório recebido, traduzindo sempre a capacidade da natureza humana de, na eterna busca de si própria, descobrir novos caminhos para esse encontro.

Brincadeiras ao ar livre, simplicidade e ampla liberdade para o espírito criador das crianças tornaram-se nossos objetivos. Brincando, a criança cria um tempo e espaço próprios e experimenta a inesperada aventura de um impulso interno, que imediatamente se transforma em ato. É no corpo em movimento que o brincar acontece. E foi justamente na percepção dessa estreita e significativa relação entre a linguagem do brincar e do corpo, expressa na criança duma forma tão única e unida, que acolhemos os toques sutis e nos iniciamos nos primeiros contatos. Compreendendo o corpo como um veículo continente da vida que ali se expressa e, respeitando o mistério que cada uma delas abriga, colocamo-nos a serviço de um caminho de contato com as crianças, deixando que elas fossem dando as direções por onde nossas mãos podiam tocá-las. A maneira rápida e contagiante como as crianças assimilavam esse tipo de abordagem corporal nos confirmou a necessidade e a receptividade do corpo em ser acolhido com profundo respeito, tempo e suavidade. Afinal, elas já nos haviam antecipado essas qualidades através dos próprios gestos. Uma esteira sobre o gramado, uma sombra de árvore, a quietude da natureza juntavam-se àquela entrega mútua da criança e do adulto ao partilharem juntos um momento de troca individual, serena e profunda.

As crianças sabem do que precisam. Suas brincadeiras sempre estão a falar de suas necessidades. No contato com a natureza, o corpo, que também é natureza, se experimenta se explora e, principalmente, se reconhece como fonte de sensações, flexibilidade, equilíbrio, força, peso, leveza, suavidade etc. O corpo como instrumento a ser afinado tem a natureza como seu diapasão. O desenvolvimento do trabalho corporal utilizando os toques sutis atua como um chamado de reintegração à nossa corporeidade, portanto, ao que em nós é natureza, e assim podemos nos sentir mais em “casa”. Sob a ação dos toques o corpo respira, se alonga, se expande externamente, ao mesmo tempo em que o olhar da criança, a partir de um determinado momento, atravessa o aqui e agora e se mostra distante como se uma expansão interna estivesse ocorrendo paralelamente. Esse mesmo fenômeno se manifesta quando as crianças se entregam e se integram em certas brincadeiras de tal forma que seu olhar transcende a própria brincadeira e se liga a alguma coisa que aparentemente não está ali presente.

Observando uma criança nesse estado, quando depois de algum tempo ela retornou à brincadeira, arrisquei perguntar onde ela havia estado. Para minha surpresa, respondeu com a maior naturalidade: “Eu estava com saudade de meu pai e fui até a Alemanha. Ele estava no carro e eu abracei meu pai e voltei”. Ela continuou brincando, e eu silenciei. Aprendi com essa criança que há outros níveis de realidade que podem ser conectados quando nos permitimos mergulhar dentro de nós mesmos e, consequentemente, levantamos o tempo.

A distância e a proximidade estavam unidos num mesmo instante naquela criança, confirmando a capacidade de criação de tempo e espaço próprios com os quais elas, as crianças, convivem em sua infância. O contato mais sutil com o corpo mobiliza esse estado de entrega a um tempo sem tempo e foi por isso que as crianças sintonizaram rapidamente com essa abordagem corporal. Bastava iniciar o contato com uma criança que várias outras se aproximavam e pediam: “Agora sou eu”, “Depois sou eu”, “Quero mais”, “De novo”, e ali ficavam em silêncio, aguardando a sua vez. Menino ou menina, do menor ao maior, se alternavam aos pedidos de toques, incorporando-os como mais uma das possíveis brincadeiras do seu repertório. Ao início do toque, os movimentos da criança, dos braços e das pernas, entram num processo de ajeitamento sobre a esteira, reagindo com leves contrações e relaxamento. Cócegas, a depender do toque, se manifestam em gostosas risadas. Aos poucos, esses movimentos vão diminuindo de intensidade, e a criança expressa em sua fisionomia a serenidade que envolve seu corpo.

A cada experiência com os toques sutis experimentados nas crianças como “novas brincadeiras”, era concreto e visível o recondicionamento imediato do corpo físico. A ampliação da respiração, a harmonização do ritmo respiratório e a soltura muscular cooperam para a criação de espaços novos que vão sendo abertos internamente. Aí, por certo, se alojam as indagações mais profundas que espontaneamente se manifestam ao receberem, através do corpo, um acolhimento no tempo e no espaço. As crianças sentiram na pele o significado desses toques. Sendo a pele considerada por alguns autores como o “sistema nervoso externo do organismo”, a imediata resposta das crianças ao uso dessas abordagens e à descoberta de outras por elas reinventadas afirma a sensibilidade da pele como um recurso de extrema importância no processo de desenvolvimento do ser humano.

Quando me encontrava com um número de três a quatro crianças à espera do que elas nomearam de massagem, pedia a outra criança que me ajudasse transferindo para ela o movimento de tocar o companheiro. Mais de uma vez fui surpreendida pela prontidão com que elas respondiam ao chamado, tanto a que ia receber como a que ia desenvolver o toque. O fato de já haver experimentado no próprio corpo aquele tipo de trabalho e a atitude de “olhar” o companheiro recebendo o toque, enquanto esperava a sua vez, por certo propiciaram uma preparação especial, tal era a prontidão das suas mãos, o “gesto pronto” para desenvolver a massagem. O contato com a natureza e a disponibilidade de acesso a brincadeiras constantes com seus elementos, seja a terra, a areia, a água, o fogo, o vento, a brisa, são portadores de contatos naturais que ativam e auxiliam o processo de “equilibração” dos corpos físicos, emocional, mental e espiritual.

Tanto a ação do “brincar” como a ação dos toques sutis são gestos que atravessam o corpo e tocam a alma, abrindo espaços novos para a circulação de uma sensibilidade ainda pouco conhecida porque pouco exercida, mas à disposição de um possível desenvolvimento mais harmonioso do ser humano.

Um desenvolvimento que aposte na complementaridade da vida e não na sua fragmentação, essas técnicas tão simples em sua aparência, mas tão profundas em sua atuação, foram assumidas pela maioria das crianças justamente pelo seu caráter simples e profundo. Nesse sentido, a experiência com os toques sutis produz um relaxamento das defesas conscientes, e justo nesses momentos, são abertas oportunidades para experiências subjetivas que se encontram em níveis mais profundos, em que ficam dissolvidas as divisões entre o que está dentro e o que está fora. Uma convivência harmoniosa é trocada entre o corpo e o estímulo táctil, determinando uma cadeia respiratória que propicia um equilíbrio do campo fisiopsíquico. Uma linguagem introspectiva surge inaugurando uma atitude que poderíamos chamar de “contemplativa”, em que o olhar se distancia porque consegue penetrar em novas e desconhecidas paisagens.

Move. Não se move. Está longe e está perto. Está dentro de tudo isso. E está fora de tudo isso. Kena Upanishad

O relato fotográfico e as histórias vividas durante os “toques” revelam o significado desse trabalho. A imagem gestual das crianças, sua fisionomia, seu corpo descrevem a intensidade de suas respostas a esse tipo de abordagem corporal.

UM TOQUE • UMA HISTÓRIA

Deitado sobre a esteira, um menino de quatro anos me aguardava. Iniciamos o toque com rotações nas pequenas articulações dos dedos dos pés, acompanhando o ritmo da respiração. Ele balançava a cabeça de um lado para outro, coçava os olhos, ora estirava a perna, ora a encolhia, até que aos poucos leves bocejos começaram a surgir. Seu olhar se tornou distante e seu corpo parecia agora colado ao chão, tal era sua soltura muscular.

Um silêncio nos rodeou. A certa altura ele falou: “Sabe que eu vou ser maior do que o meu pai? Eu vou ser do tamanho desta árvore”. E apontava um enorme pinheiro que se encontrava atrás de mim. “Nossa!”. “Você vai ser desse tamanho?” “Sim”, afirmou ele. “Vou ser desse tamanhão!”

Novo silêncio. Eu continuava desenvolvendo o toque nos seus pés. Ele voltou a falar: “Sabe, eu não vou ser até lá em cima da árvore não. Eu só vou crescer até ali”. E apontava para uma altura que representava a metade do pinheiro.

Ficamos em silêncio novamente. Passando algum tempo, já quase terminando o toque, ele voltou a falar: “Você sabe que todo mundo pensa que Deus é maior que tudo? Mas não é, não!”, ele mesmo afirmou. Brotou em mim uma pergunta: “Quem então é maior que Deus?” “A vida, a vida é maior que Deus. A vida é tudo. Tudo é a vida. Eu acho que a vida é que é Deus!”

Novo silêncio entre nós. Dessa vez tão intenso como suas palavras. Termino de tocar os seus pés, ele calmamente se levanta e segue seu caminho em direção a outra brincadeira.

OUTRO TOQUE • OUTRA HISTÓRIA

“Depois sou eu”, dizia ela com seis anos, se aproximando do local onde me encontrava iniciando o trabalho corporal com outra criança.

Sentou-se próxima à esteira, muito calma, aguardando a sua vez. Ao chamado dos amigos para brincar, ela, muito assertiva, respondia: “Agora não, depois eu vou”, e ficava em silêncio observando o que eu fazia. Algo ali estava acontecendo com muito significado, já que sua paciência, esperando o momento em que pudesse atendê-la, era incomum.

O tempo que ela permaneceu olhando minhas mãos tocando outra criança certamente agia sobre ela como uma preparação, uma receptividade, uma abertura para o trabalho corporal que em seguida iríamos fazer. Logo após a saída da primeira criança, ela rapidamente se ajeitou na esteira e curiosamente fechou os olhos, o que não é um gesto comum nas crianças dessa idade. Houve momentos em que cheguei a pensar que havia adormecido, tal era sua quietude. Ao terminar o toque que sempre solicitava: o “sopro na coluna” e o “sopro ao redor do umbigo”, ela abriu os olhos devagarzinho como se estivesse chegando de muito longe, esboçou um sorriso misterioso e se espreguiçou, parecendo uma criança pequena quando está acordando em paz.

“Você está com sono?”, perguntei. Ela sempre dizia: “Não, agora vou brincar!”. Porém, neste dia, seu corpo parecia não querer sair da esteira. Virava, revirava, até que conseguiu se sentar e, olhando para mim, falou: “Você sabia que eu tinha um medo grandão?” “Que medo?”, perguntei. “Quando eu estava na barriga da minha mãe, eu pensava que ia morrer lá dentro.” “Como você sentia isso?” “Tinha uma coisa me apertando, me esticando, parecia que eu estava secando. Eu ia ficar sequinha e ia morrer.”

Fiquei em silêncio. Ela veio para meu colo. “Ainda bem que eu nasci logo e não morri. A minha mãe foi quem morreu.”

Abracei-a. “Que bom que você está viva, menina! E aquele medo grandão por onde anda agora?” “Agora não tenho medo. Eu só tinha medo na barriga da minha mãe. Eu não queria morrer na barriga da minha mãe. Ia ser chato. Acho que minha mãe sabia que eu não queria morrer junto com ela. Eu queria viver. Agora eu tenho duas mães, uma que mora no céu e uma que mora na Terra.”

Ela levantou do meu colo e foi chamar as outras crianças para brincar de “morto/vivo”, brincadeira esta que há duas semanas ela pedia quase diariamente.

MAIS UM TOQUE • OUTRA HISTÓRIA

Certa manhã, uma menina de quatro anos se aproximou e disse: “Você faz uma massagem em mim? Quero tirar uma barata que está aqui dentro”, e apontava a região do coração com a mão.

Essa criança, desde que havia chegado naquela manhã, mostrava-se inquieta, entrando em atrito a todo instante com as outras crianças. Tudo o que se propunha a fazer não lhe agradava, interrompendo no meio, o que não costumava ser uma atitude comum nela. Coincidia que, naquele dia, completava-se uma semana de ausência dos pais, que estavam viajando, tendo ela e os irmãos ficado sob a responsabilidade de empregados de confiança do casal.

Ouvi aquele pedido e, surpresa pelo significado que ela estava dando à massagem, voltei a perguntar: “Por que você quer fazer massagem agora?” “Eu quero tirar a barata que está dentro de mim.”

Disse-lhe para pegar a esteira, colocá-la em um lugar sombreado no jardim, como comumente fazíamos, e que aguardasse um pouco que logo eu estaria lá. Concluí o trabalho de argila que fazia com outra criança e, alguns minutos depois, fui procurá-la, certa de que a essa altura ela teria esquecido a massagem, ligando-se a alguma brincadeira pelo caminho.

Qual não foi minha surpresa ao encontrá-la deitada calmamente na esteira, à sombra de uma árvore, aguardando minha chegada. Sentei-me e, como de costume, iniciei o trabalho massageando seus pés. Perguntei-lhe:

“A barata ainda está dentro de você?” “Está aqui dentro de mim”, disse ela com determinação, mostrando o coração. “O que será que ela está fazendo aí dentro?” “Está fazendo cócega ruim, que eu não gosto. E todo mundo está brigando comigo hoje.” “Então, vamos lá”, disse eu, “vamos ajudar essa barata a sair daí de dentro”.

Ela disse: “Faça aqui”, e mostrou a barriga. Fiz o primeiro toque, deslizando a mão suavemente em pequenas rotações no sentido horário ao redor do umbigo, ampliando a pressão e extensão do toque na parte superior, atingindo a região do diafragma.

Ao terminar esse movimento, ela logo se virou de costas e disse: “Agora nas costas.”

Iniciei o trabalho com sopro sobre a coluna, subindo devagarzinho sobre cada vértebra. No exato momento em que atingi a sétima cervical, ela se virou e disse: “Chega, já saiu, a barata já saiu.” Levantou-se no prumo, leve como um passarinho, e foi brincar com os amigos, passando o resto da manhã em paz.

Por mais uma semana, durante o tempo de ausência dos pais, todas as manhãs ela chegava pedindo massagem. Essa criança mostrou que seu corpo, através dos toques, registrava sensações de harmonia, de ordenamento, uma vez que partiu dela a procura da massagem como um recurso para limpar um incômodo corporal produzido pelo sentimento de insegurança ou mesmo “saudade”, causado pela ausência dos pais, e configurado no corpo pela estranha presença de uma barata no coração. As crianças sabem por que tão espontaneamente foram receptivas a essas abordagens corporais. A atitude concentrada e compenetrada com que aplicam os toques nos seus companheiros fala da seriedade e do cuidado, que são absolutamente necessários e importantes para sua execução. A essencialidade do “toque” e a sacralidade do contato foram captadas pelas crianças. Segundo Pethö Sándor, as crianças não se deixam enganar por palavras. Pelo toque, elas sentem se podem confiar ou não, reagem às mínimas oscilações de quem as toca. As crianças são um excelente teste para saber se o toque é bom. As histórias que narramos poderiam continuar sendo contadas por mais algumas páginas, confirmando a utilização dos toques de integração fisiopsíquica, como um trabalho que poderá vir a ser incorporado nas atividades cotidianas de crianças na família, na escola, nas creches, desde que respeitada a sacralidade do corpo como veículo da vida.

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