Eu quero história de boca

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Eu quero história de boca

O homem, sendo eminentemente um ser de sentido, aventura-se através da consciência a diferenciar-se dos minerais, dos vegetais e dos animais, como bem diz um poeta anônimo:

O espírito dorme nos minerais Respira nas plantas Sonha no animal E acorda no Homem

Reunindo os verbos acordar e recordar, ousaríamos agregar os substantivos – acordo e acorde. Todas essas palavras fazem parte de uma mesma raiz semântica que se relaciona com o coração. Todas são pertinentes a essa caminhada em direção ao sentido.

Vencendo os obstáculos e caminhando entre roseiras e espinhos, o herói segue em busca de sua amada e a encontra em sono profundo, aguardando o toque amoroso que a fará despertar. Esse conto da “Bela Adormecida”, também cantado numa brincadeira de roda, nos fala sobre símbolos aparentemente simples, presentes no repertório dos contos da oralidade, que perpassa gerações e gerações, significando uma reapresentação das fontes arquetípicas da nossa psique. Fontes onde possivelmente se estabelecem as primeiras conexões do ser humano em seu eterno caminhar em busca de sentido.

Brincando de roda, as crianças cantam, dançam e tocam os acordes de sua sensibilidade, sintonizando-se com símbolos que pertencem à realidade, situada no campo da memória coletiva, pela ligação que elas ainda mantêm com a unidade. Fervorosamente deitadas em sono profundo, aguardam sem pressa o encontro com o príncipe que irá acordá-las. O adulto, tocado pelo mesmo tema da Bela Adormecida, segue, em poesia, o acordar que a criança realizou brincando. Como em “Eros e Psiquê”, de Fernando Pessoa:

“Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.

A Princesa adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.

O poeta e a criança se reúnem em gestos que os levam a si mesmos, cada um emitindo o seu acorde.

Nossas “histórias de boca”, como pedem as crianças, refletem uma necessidade humana de criar imagens, imaginar, habilidade que nos confere a ponte para a capacidade de abstração – campo que permite a nós seres humanos entrar em contato com outros níveis de realidade tão importantes ao desenvolvimento da consciência.

A articulação contínua entre o mundo interior e exterior é mediada pela imaginação. A força e a riqueza da imagem residem na qualidade de relações que ela cria ou desvela entre esses aparentes dois mundos. Há uma realidade anímica, mítica e simbólica percebida através da imaginação, e essa realidade é objetiva; é um nível de realidade que medeia outros níveis de realidade. Ela é o impulso em direção ao desconhecido. A imaginação é mediadora entre o mundo visível e invisível, por isso o nível conceitual é um instrumento insuficiente para elucidar o mundo da imaginação.

A imaginação é uma espécie de mensageira que transporta a energia arquetípica para o consciente, e isso se faz através do símbolo. O símbolo é o centro do coração, da vida imaginativa, que pode ser revelado, acessado, sentido e experimentado sempre que o consciente precisa se religar a uma experiência primordial da humanidade. Como uma espécie de princípio orientador de natureza irracional, o símbolo é dotado de uma força capaz de gerar um campo de energia autorreguladora em si mesma. Ele funciona como uma forma de tradução do arquétipo para a consciência. É a ponte que liga nossa razão à nossa alma, passando por terrenos conhecidos e desconhecidos, pela luz e pela sombra, unindo o passado, o presente e o futuro no eterno.

Talvez uma experiência vivida pelas crianças de seis anos e assistida por nós aqui na Casa Redonda possa elucidar de um modo mais concreto o que pontuamos: três amigos no final do seu período na Casa Redonda e prestes a seguirem outra escola para cursar o ensino fundamental, mostravam-se agitados, ora transgredindo as regras até então já incorporadas, ora buscando chamar atenção através de gestos de agressão a outras crianças, ora sendo extremamente companheiros e amorosos entre si, ora criando conflitos, excluindo um ou outro parceiro. Essas manifestações traziam em suas falas a vontade de ir para outra escola e a vontade de ficar ainda na Casa Redonda. Um rito de passagem manifestava-se ali com muita clareza. O crescimento em idade e em experiência neles presentes trazia à tona ansiedade, medo e dificuldades de enfrentamento entre um mundo já conhecido e um mundo que se anunciava de uma breve mudança. Uma dessas crianças descobre um tronco de árvore cortado com três raízes expostas e chama os amigos, que logo atendem à convocação para destacar aquelas raízes da terra que as envolvia. Procuram os instrumentos necessários e se deslocam durante dias para o local do tronco, armados de pás e martelos. Cada um imediatamente liga-se a uma das grandes raízes, e começam a trabalhar diariamente durante uma semana na tarefa de retirar as raízes.

“Isto não é uma brincadeira, é uma coisa séria, é um trabalho. A gente vai descobrir o portal para o outro mundo”, afirmava uma das crianças para as outras.

Ao longo do contato com aqueles gestos de desobstruir as raízes, cada um fixado numa raiz escolhida, trabalhando e conversando, deram asas à imaginação, trazendo à tona um repertório imaginário que tentaremos sintetizar. Cada raiz passou a ser uma viagem ao fundo da terra, em que eles poderiam encontrar o futuro ou o passado. Um deles preferiu o futuro, em que poderia haver máquinas possantes que lhes permitiriam voar; já os outros dois gostariam que suas raízes os levassem ao passado, um deles chegando a verbalizar que assim poderia ver sua mãe mocinha e sua avó antes do derrame.

Naquele presente, o passado e o futuro foram temas discutidos inúmeras vezes em suas conversas. Ver o mundo de antigamente com os dinossauros e ver o futuro com máquinas poderosas, às vezes, eram possibilidades assustadoras. A solução que os três encontraram para essa primeira tensão foi estabelecer que estavam apenas cavando para chegar até o outro lado da Terra. Abandonaram por um tempo as escavações e voltaram para suas outras brincadeiras do dia a dia.

Afinal, não deve ser tarefa fácil ir desvelando suas raízes da terra. Sincronicamente, nos chegou um texto sobre o mito da árvore Ygdrasil, que falava sobre uma árvore de três raízes, cada uma conectada com o passado, o presente e o futuro. Ygdrasil é uma árvore colossal na mitologia nórdica, considerada o eixo do mundo. Há três Nornas, um clã de deusas cuja função é controlar a sorte, o azar e a providência. São elas as guardiãs das três raízes: Urd, a guardiã do passado, é representada por uma anciã da raça humana e guarda os mistérios do passado. Verdandi é a vigia do presente, e encarna na forma de uma mãe, e tudo o que acontece é tecido por seus pensamentos; representa o movimento e continuidade. Skuld é a guardiã do futuro, representada por uma virgem. Profecias e adivinhações estão relacionadas a elas. Elas detêm o controle de uma das maiores forças do universo: o destino.

Essa experiência que se prolongou até o final do ano envolveu momentos livremente escolhidos pelos três meninos, em horários e dias variados, ampliando a cada nova escavação o destaque das raízes da terra. Os adultos foram excluídos de suas presenças enquanto trabalhavam com suas raízes, certamente porque esses instantes correspondem a um processo interno e profundo, em que um espírito orientador deve reger suas ações, conduzindo-os para uma elaboração pessoal, e também coletiva, de um momento significativo de passagem para uma outra etapa de suas vidas ao completar os sete anos. O mundo imaginário se revela através de imagens, sejam elas existentes ou virtuais, ambas são atuais: de um lado, se encontra um nível que apresenta experiências sensíveis, de outro, experiências sutis, suprassensíveis, como encontramos na caminhada das crianças em busca das pedras.

As pedras, um dos elementos mais antigos do nosso planeta, trazem dentro de si o mistério do tempo. A curiosidade dos meninos certamente participa da busca do que se esconde em seu interior, tal a insistência, ano após ano, em descobrir alguma coisa preciosa que se encontra dentro delas. A aventura em busca do ouro é uma longa caminhada humana. Será que as crianças, em suas brincadeiras, nos reapresentam esse percursos em sua compulsão por descobrir os desconhecidos tesouros que podem estar contidos nessa matéria-prima indiferenciada que a pedra bruta simbolicamente representa?

Os pequenos pesquisadores dessas preciosidades fazem suas buscas em caminhadas que se estendem fora dos limites da Casa Redonda e num determinado momento, diante do interesse de um grupo de crianças, suas indagações foram respondidas pelos monitores do Museu de Geologia da Universidade São Paulo em uma visita a esse local.

É vital que as crianças expressem sua curiosidade, façam perguntas e recebam respostas adequadas, pertinentes à verdade do que estão querendo conhecer. A informação deverá ser dada por aquele que conhece o assunto e consequentemente poderá irradiar para as crianças o gosto pelas indagações, a alegria da busca de conhecimento. A curiosidade da criança é o caminho de iniciação à investigação científica, daí o respeito e a atitude atenciosa do professor na escuta sensível dessa fase exploratória do mundo externo. Uma pergunta respondida de maneira inteligente e sensível é o trampolim para o surgimento de novas perguntas e a condição de ativação da curiosidade nata das crianças.

A escola, deveria ser o lugar das perguntas, das indagações, a porta aberta ao mundo que quer ser conhecido. Essa é a grande viagem em que professor e aluno se unem na vontade comum de explorar mundos desconhecidos. A ampliação das indagações pode ser feita através de vários recursos sejam livros, filmes ou conversas com profissionais que atuem na área de interesse das crianças.

Após diversas abordagens, no caso das pedras, as crianças espontaneamente foram trazendo de casa livros sobre minerais, pedras polidas, cristais de diferentes formatos e cores que se juntaram às pedras recolhidas em suas investigações, surgindo o museu das pedras, organizado por eles próprios. Numa dessas experiências, um menino de cinco anos definiu uma área do jardim para cavar e descobrir uma mina de cristal. Como esse lugar estava gramado, propusemos a ele buscar outro local para realizar suas escavações. Ele resistiu com muita persistência e determinação, afirmando que ali se encontrava a mina a ser descoberta. Aceitamos sua ideia e conversamos sobre o fato de que depois de escavar ele deveria recolocar a grama retirada no mesmo lugar.

Durante três dias consecutivos, auxiliado por outros amigos, o menino labutou com a terra dura em busca do seu tesouro – a mina de cristal. O buraco foi crescendo e qual não foi nossa surpresa quando um deles gritou com profundo entusiasmo: “Encontramos a mina!”. Todas as crianças e nós adultos nos dirigimos para o local e, de fato, assistimos à retirada de pedaços de cristais que eles iam distribuindo com intensa alegria para todos os amigos!

Há dezoito anos, aqueles pequenos cristais tinham sido colocados na terra pelo então jardineiro da Casa Redonda, numa profundidade de quarenta centímetros cobertos por grama. Era uma quantidade enorme de lascas de cristal de rocha que estavam expostas no jardim, e ele as havia enterrado sem comunicar a ninguém.

Surpresos com o acontecimento extraordinário, nos perguntamos: “Como essa criança e seus amigos sabiam que ali havia uma mina de cristal?” “O que levou aquela criança a determinar aquele local com tamanha persistência?” “Que sintonia se estabeleceu entre aquela criança de cinco anos e aquela mina de cristal escondida há dezoito anos?”

Essas e outras experiências vividas com as crianças vêm nos apontando para a possível presença de um espírito orientador que extrapola a racionalidade e pode se manifestar pela força irresistível do impulso inconsciente. Pouco sabemos sobre esse campo de interações sensíveis entre a natureza e o ser humano, nesse caso, uma criança. O fato é que essa sintonia existe e que constitui para nós, professores, um alerta para nos abrirmos sensivelmente ao inusitado, ao inesperado e imprevisível mundo da imaginação infantil.

Dessas experiências vividas nascem os rituais na Casa Redonda, formas novas para celebrar determinados momentos importantes como, a finalização de ciclos de crescimento com a chegada dos sete anos. Um desses meninos que completava seu sétimo e último ano na Casa Redonda pediu para colocar um cristal no meio de seu bolo de aniversário. A partir desse dia, todas as crianças que completam sete anos, mesmo que estejam em outra escola, voltam à Casa Redonda para celebrar essa data especial compartilhando o Bolo do Cristal.

O entendimento natural dessa linguagem simbólica pelas crianças permite que, brincando, elas coloquem em sintonia sua realidade externa com o mundo interno, reunindo o que não está separado. Nunca foi tão necessário para profissionais que desenvolvem atividades com as crianças o reconhecimento da importância da presença da imaginação com sua objetividade e a criação de imagens internas como fator determinante de uma futura saúde física, emocional, mental e espiritual do ser humano.

Assistimos, cotidiana e aceleradamente, como nossos meios de comunicação, dotados cada vez mais de fantásticos recursos tecnológicos, se apropriam do universo simbólico da cultura da infância, traduzindo o acervo de literatura oral através de imagens gráficas e cinéticas, interferindo na capacidade de formação de imagens internas, tão essenciais nesse período de desenvolvimento.

Além de frequente configuração redutiva dos elementos que compõem a história, construindo adaptações que ignoram a força simbólica presente nas histórias e nos contos tradicionais, a televisão, com desenhos animados, filmes e programas ditos infantis, vem inundando de imagens o cérebro das crianças, justamente no período em que esse cérebro deveria aprender a formar imagens internas.

O não desenvolvimento de imagens internas significa falta de imaginação. As imagens internas são configurações que se estruturam de dentro para fora, resultantes das experiências que aportam na vida da criança. Essa elaboração pertence a dimensões sensíveis e suprassensíveis, que extrapolam a dimensão racional e constituem uma maneira própria de ver, sentir e se apropriar da realidade. Elas talvez pertençam à mesma categoria das imagens da consciência mítica em que as experimentações sensíveis ditavam os significados e afirmavam um modo de ver e se situar no mundo tão real quanto outros níveis de realidade. O mundo imaginário próprio das crianças emprega, portanto, parâmetros de uma realidade que não coincide necessariamente com a realidade do mundo adulto.

O espaço e o tempo da criança não trazem divisões entre o mundo interno e externo – o dentro e o fora – a capacidade de imaginação rompe as limitações do corpo e funciona como um veículo de expansão e construção do eu de maneira integrada. Certa manhã, me dirigi para o canteiro de areia onde uma criança estava deitada. Seu corpo parecia estar totalmente relaxado, entregue à brisa que soprava e aos raios do sol que atravessavam as folhas dos galhos das árvores, incidindo sua luz sobre ela. Seus olhos estavam fechados como se dormisse um sono tranquilo. Algumas crianças se aproximaram da areia e logo perguntaram: “O que aconteceu com ela?”. “Ela está dormindo?”.

Pedi que falassem baixinho, pois certamente ela parecia estar querendo descansar. Eles atenderam e comigo permaneceram alguns minutos observando em silêncio, tocados pelo clima de serenidade que emanava daquela cena, até que uma criança, não contendo sua curiosidade, pegou um punhado de areia e colocou nos pés da criança que dormia. Imediatamente e muito zangada, ela se levantou da areia, olhou para nós e disse com uma voz brava: “Será que eu não posso nem morrer tranquila?”.

Levantou-se e se dirigiu para uma árvore afastada da areia deitando sob sua sombra na grama, repetindo com seu corpo o mesmo gesto de entrega de antes. As crianças queriam segui-la, mas expliquei que certamente ela queria ficar sossegada e não gostaria naquele momento de ninguém por perto. Eles compreenderam, aceitaram a ideia e partiram para suas brincadeiras, deixando-a em paz. Ela permaneceu ali recolhida e, depois de certo tempo, levantou-se e veio participar da brincadeira na areia, já iniciada pelos seus companheiros. Sem nenhum comentário, dela ou das crianças, ela entrou na brincadeira, tranquilamente. Curiosa, no final da manhã me dirigi a ela: “Então, Stephanie, você conseguiu morrer tranquila?”. “Sim, disse ela, eu fui até o céu!” “Você foi até o céu?” “Sim, lá é muito legal. Lá tem uma porção de piscinas de refrigerante. Eu nadei nas piscinas de refrigerante. Lá todo mundo tem olho colorido. O céu é muito legal.”

Ela falou de sua experiência de morrer tranquila com muita propriedade, mostrando a intensidade com que sua imaginação estendeu-se até o céu para resolver a grande questão do momento: lidar com a proibição severa de seus pais em relação ao consumo de refrigerantes. Há vários níveis de solucionar dificuldades. Essa criança de apenas quatro anos de idade usou um recurso que lhe trouxe uma experiência sensível através da qual certamente elaborou seus sentimentos. Isso a tranquilizou, pelo menos temporariamente, a julgar pela fisionomia serena ao despertar.

Ao ouvir o relato dessa experiência, o professor Agostinho da Silva se encantou com a fala dessa criança e expressou enfaticamente: “O milagre que uma criança faz cotidianamente no mundo é esse milagre de conseguir que o tempo desapareça de sua vida na realidade. A criança brincando suspende o tempo. É o adulto que vem impor normas de tempo, interrompendo a cada momento a sua história”.

Essa fala me fez lembrar a experiência de uma criança no dia seguinte à morte do pai. Ela chegou à Casa Redonda muito inquieta, dizendo que queria fazer uma coisa que ela não sabia o que era. Andava de um lado para outro, sem se ater a nenhuma atividade e, de repente, verbalizou: “Eu quero ir para o mato!”.

Nesse momento eu me dispus a caminhar com a criança de seis anos em seu trajeto, buscando algo que ela mesma não conseguia verbalizar. Silenciosamente, sem fazer perguntas nem buscar soluções para a angústia expressa em seu olhar distante, em meio a gestos descoordenados e agitados, fui calmamente seguindo seus passos. Caminhamos juntas, eu atrás dela, por um terreno cheio de mato alto, onde ela pisava com determinação e sem medo, adentrando cada vez mais nessa área que extrapolava a região até então conhecida, por se tratar de um terreno vizinho à Casa Redonda. Num determinado momento, ela se dirigiu para um amontoado de lixo de construção, onde tijolos quebrados, pedaços de madeira, arames retorcidos pareciam estar ali há muito tempo. Diante desse local, ela parou e passou a observar atentamente aquele entulho, e de repente gritou: “Era isto que eu estava procurando!”.

Então retirou com muito cuidado uma tigela de barro que se encontrava embaixo de algumas madeiras. Nessa tigela havia sido colocada uma mistura de cimento que impedia que vissem as flores ali desenhadas e desbotadas pelo tempo. Ajudei-a deslocar a tigela com cuidado para não quebrar e assim a segurou nas suas mãos, e dirigiu-se para a Casa Redonda dizendo que precisava limpar aquela sujeira e pintá-la de novo para ficar bonita. Continuei próxima, e fomos ver a possibilidade de retirar o cimento, ação que logo integrou outros que quiseram ajudá-la. O clima instaurado pela tarefa de reconstrução durou a manhã inteira. A criança desenvolveu a recuperação da peça de barro com grande concentração e foi seguida por três amigos que compartilharam esse momento, lixando e pintando as flores que surgiram após a limpeza do cimento.

Terminada a atividade, ela se dirigiu até nós, que estávamos na mesa onde foi finalizada a obra, e expressou calmamente: “Meu pai todo dia dava comida para os passarinhos na minha casa, e ele estava precisando de uma tigela maior. Agora que ele morreu sou eu que vou dar comida para os passarinhos, e eu achei a tigela grande que ele precisava”. Levantou-se e levou a tigela para casa.

Experiências como essa e outras tantas que aqui poderiam ser contadas trazem à tona os recursos internos do ser humano que podem ser traduzidos em ações restauradoras de sua própria psique. Se dermos às crianças o tempo sem tempo para elaboração, suas vivências serão sempre marcadas por profundos significados.

Enquanto a criança brinca, o trabalho mais profundo acontece por baixo do que está aparente. Ela só conhece um mundo, que é exatamente o mundo real, no qual e com o qual brinca. A criança não brinca de viver. Brincar é viver! As crianças são eminentemente seres de experiência. Curiosas, se lançam a descobertas, a perguntas de como são as coisas. Experimentam o corpo desafiando seu equilíbrio, sempre em sintonia com o fato de conseguir ir adiante, construindo seu modo próprio de responder às suas necessidades de crescimento num contexto real.

O brincar une. Essa é a lição de grandeza e beleza da unidade que a criança nos traz. O brincar é o território da alegria onde a ação da alma é também ação do corpo e vice-versa.

Era uma vez... Assim se inicia a entrada num mundo diferente do mundo de todo dia, o mundo onde tudo é possível. “Era uma vez” anuncia a existência de outro mundo, um “além” diferente daquele do dia a dia. Esse mundo se encontra nos contos, nas lendas, nos mitos, nos sonhos, na poesia, nas pinturas e na música.

Reis, rainhas, príncipes, princesas, anões, bruxas, serpentes, dragões e outras inumeráveis personagens fazem parte desse mundo mágico, encantado, fascinante, tremendo e numinoso, que transcende a nossa racionalidade e permeia a nossa vida quando sonhamos de olhos abertos ou fechados, quando escutamos e olhamos para o outro para além da aparência. É nesse mundo que a criança vive, principalmente nos primeiros anos de sua vida.

Desde muito cedo, a linguagem da criança é uma linguagem expressa em imagens. Por aqui passou um cavaleiro sério, montado no seu cavalo de pau, segurando uma espada ou uma lança, um escudo feito com pedaços de madeira ou papelão, que ele mesmo inventou e construiu. Imbuído de valentia e coragem, expressas no seu corpo ereto, firme e decidido, ele comunica: “Vou matar o monstro! Ele está ali, e eu vou pegá-lo. Eu sou forte!”.

Como Dom Quixote, lá vai ele pelo caminho. Chama um companheiro. Um ou dois o seguem, amigos sintonizados na mesma aventura: enfrentar o dragão, o lobo!

“A gente vai matar o dragão! Ele morde e ataca! Ele pode atacar você, viu? Ele é perigoso!”. O monstro está ali perto, escondido... Eles estão vendo. Apontam para o local a que se dirigem, às vezes, correndo, às vezes, com cautela, à procura de algo que os amedronta. O desconhecido: o monstro! Entre coragem e medo, armados com instrumentos para atacar e se defender, seguem sua caminhada anunciando, por onde passam, a sua façanha, e agregando, às vezes, mais companheiros rumo ao ato heróico de enfrentar o perigo.

Nesses gestos de enfrentamento, de exploração da força física e da coragem, os meninos vão se exercitando passo a passo na eterna e irreversível jornada humana rumo à aventura da consciência. É de vital importância a presença de figuras masculinas como professores de crianças. São eles os representantes de uma força física e de uma energia, cujo próprio tom de voz emana uma qualidade diferenciada do mundo feminino, equilibrando as dinâmicas com as quais as crianças confrontam seus relacionamentos. São eles os companheiros da aventura que criam referências significativas para as crianças irem em direção à conquista de novos espaços.

Assegurando o confronto com os dragões e monstros que ameaçam sua caminhada em direção aos mundos desconhecidos, os professores abordam essas situações atuando como referências de força, determinação, coragem, objetividade na busca de soluções que se apresentam durante o percurso das explorações que envolvem principalmente o mundo dos meninos.

Confrontando os monstros, eles vão reconhecendo a sua força, sua coragem e determinação, espelhando-se na presença do professor sensível que está ao seu lado. A façanha que esses pequenos heróis entre três e quatro anos vão vivenciando, a cada dia com mais detalhes, criando aventuras cada vez mais perigosas, é uma brincadeira das minhas favoritas. A natureza é o cenário onde a imaginação cria os recantos mais escondidos, e os caminhos tornam-se labirintos com esconderijos e armadilhas.

O retorno do herói, com suas vitórias alcançadas e contadas para os companheiros que não participaram da caminhada, traz suas marcas no corpo físico, estampadas na face avermelhada, nos olhos arregalados. Afinal, enfrentaram o desconhecido ameaçador e o mataram. O monstro agora não voltará nunca mais...

No outro dia, novos monstros aparecem, e lá vão eles repetindo o gesto que, à medida que é interiorizado, vai diminuindo de frequência e aparece sob novas configurações, como, nos jogos que exigem o desempenho corporal, em que as regras estabelecem desafios cada vez mais complexos, envolvendo a presença da força, da coragem e da determinação.

Esses mesmos aspectos também estão presentes nos desafios que surgem na representação de ideias através de uma linguagem plástica, nos teatros, nos desenhos, na música, na dança, na construção de casas, nas histórias, no subir nas árvores, nos balanços e nas pesquisas sobre os animais, o próprio corpo ou assuntos que os interessem. Sempre o dinamismo é ultrapassar o já conhecido em direção ao desconhecido. Nesse movimento, as crianças parecem nos desafiar a descobrir não somente o mundo que temos fora de nós, mas especialmente o mundo que temos dentro de nós. A exploração da nova possibilidade, que vai sendo experimentada no corpo, possibilitando a criação de uma base de sustentação saudável para o conhecimento que vão adquirindo, podendo amanhã transferi-lo como recurso significativo, porque vivido, para sua entrada no mundo do pensamento abstrato, que ocorre aproximadamente por volta dos dez para onze anos, segundo Jean Piaget.

Esse conhecimento incorporado é a ferramenta da criança para iniciar sua trajetória de saída de um mundo indiferenciado, em que suas respostas estão imersas no núcleo familiar representado pela mãe, pelo pai, pelas pessoas com as quais ela cria seus primeiros vínculos afetivos, em direção ao movimento próprio e singular de integração a outros núcleos que vão se ampliando para além da família consanguínea, seja a sociedade, seja o mundo.

A criança, antes de ser intelecto, é instinto e sensação. Conhecer-se a si próprio nessa fase é vivenciar corporalmente as ações que a imaginação propõe como fatos reais nas brincadeiras, dando início ao constante trabalho do ser humano de criar uma ponte saudável entre o conhecido e o desconhecido, entre o consciente e o inconsciente, caminhada que marca o diferencial humano: a consciência. De repente, por ali passou uma princesa, uma bailarina, uma bruxa, uma mãe, uma madrasta. Cada uma delas, enroladas nos panos coloridos, nas saias rodadas, arruma-se diante do espelho e se descobre personagem de uma história, de um enredo. A princesa precisa ser acordada pelo príncipe depois que a bruxa a enfeitiçou. O canto, a dança, a roda, ritualizam a história que acontece na medida em que as personagens se escolhem ou são escolhidas.

A grande cena é o desmaio da Bela Adormecida, que deitada no chão aguarda o príncipe ou, na falta dele, uma outra princesa que irá acordá-la. O importante é o ato de ser acordada. Uma vez acordada, a festa acontece. A alegria contagia a todos e, de repente, ouve-se um pedido: “De novo! Agora sou eu a princesa!”. E tudo recomeça, uma vez, duas, três vezes, confirmando como cena principal o despertar da princesa. Hora sagrada para o gesto do príncipe que acorda e para a princesa que é acordada. Hora sagrada também para os que assistem. Enquanto a história vai se desenrolando, uma ou outra criança se aproxima, assistindo à cena com olhar atento e compenetrado. Não querem ser personagem, querem apenas olhar.

Após alguns instantes, mobilizadas pela dinâmica dos personagens, vão até a caixa de fantasias e se deixam contagiar pela alegria daquele momento mágico. Devagarzinho vão surgindo bailarinas, bruxas, cavaleiros, príncipes, índios, guerreiros que se misturam à história inicial e vão se integrando, ora harmoniosamente, ora em pequenos conflitos causados pelas interferências ou pelas disputas de papéis, no desempenho de certos enredos criados por eles próprios.

As personagens vão desfilando como num conto de fadas. As crianças trocam as vestimentas a cada instante, com detalhes que vão definindo o gosto de cada um e a identificação que cada criança estabelece com as personagens criadas no decorrer das brincadeiras. A bruxa malvada, autoritária, mandona é delegada a um adulto que deve desempenhar o papel de acordo com a direção dada pelas crianças. Ela tem de ser má! Ela tem de falar gritando. Ela tem que mandar em suas filhas e brigar com elas. As filhas coitadinhas não podem fazer nada sob esse mando autoritário.

Nessas cenas a bruxa e a madrasta se identificam em um ritual de confronto, principalmente com as meninas que atacam e tentam prender essa figura ameaçadora. Nesse caso, quem surge não é o lobo nem o dragão que aparece no mundo dos meninos como elemento assustador dos quais eles têm de se defender. Aqui as personagens da bruxa ou da madrasta personificam as forças limitadoras e ameaçadoras do mundo das meninas. Elas vivenciam nesse confronto a força poderosa identificada na relação com a mãe enquanto autoridade. Essa força da madrasta ou da bruxa precisa ser aprisionada e morta para ser transformada na mãe protetora, acolhedora, com a qual elas se relacionam de maneira afetiva e numa troca carinhosa de cuidados.

Mais uma vez, assistimos através das brincadeiras à capacidade da criança resolver suas dificuldades, seja no plano do desenvolvimento físico, seja no campo emocional, utilizando recursos que transcendem qualquer planejamento ou programação que o mais sábio educador pudesse idealizar para cumprir um desenvolvimento satisfatório.

O que assistimos em nosso dia a dia nos confirma a determinação da natureza humana de conquistar, passo a passo, seu autodesenvolvimento, desde que lhe seja permitida a experimentação, no seu tempo e no seu espaço devido, sem atropelos nem antecipações racionalistas, fazendo uso de sua capacidade de imaginação como agente determinante do processo criador da espécie humana. As crianças trazem dentro de si acumulações do universo imaginário da espécie humana que estão, na verdade, à espera desse repertório de histórias nascidas da diversidade de experiências humanas ao longo do tempo.

Uma vez estimuladas através das histórias, dos contos, dos mitos, elas podem descobrir canais de elaboração individual que se transformam em vivências pessoais, possibilitando um processo integrador da consciência. Ao observarmos a criança ouvindo uma história, percebemos o que é atenção total. Seu corpo fica imóvel, a boca, muitas vezes aberta, olhos arregalados que quase sem piscar não perdem de vista nenhum gesto do narrador. Entretanto, sua visão é transportada para onde a ação está transcorrendo, pois as histórias são apenas referências para que elas se conectem com as imagens internas correspondentes.

A habilidade de imaginar e sonhar é sem dúvida a mais humana de todas as nossas capacidades, e as crianças, ao contatar suas imagens internas, estão garantindo o alimento saudável ao desenvolvimento do pensamento abstrato. É justamente, nessa qualidade pertinente ao mundo imaginário da tradição oral que se encontra o mistério da alma infantil, ainda imersa numa unidade que vem sendo comprometida pela ruptura causada pela antecipação da racionalidade e pela paisagem informativa a que estão sendo submetidas.

“Quero história de boca” é um pedido insistente das crianças sinalizando a importância da imagem interior e ativa que as histórias contadas evocam nelas. Imagens que permitem se reconhecer através de diferentes personagens e cenários que vão sendo tecidos em sua imaginação. Os valores dominantes de nossa cultura atual vêm infligindo no mundo da criança uma avalanche de imagens externalizadas que tendem a reprimir os sentidos e enfraquecer a imaginação fatores que determinam um empobrecimento cultural. Simular esse mundo existencial da criança dentro de uma tela, acreditando que nessa interação esteja ocorrendo conhecimento, é fruto de um reducionismo e desconhecimento de como a criança se apropria do mundo.

O que se processa na realidade das telas, inclusive hoje, com o surgimento dos jogos eletrônicos e até mesmo dos chamados interativos, cada vez mais sofisticados na aliança com o mundo virtual e operando numa velocidade muito além dos ritmos naturais, é o fenômeno do congelamento do corpo e do impulso sensível das crianças. Como seres altamente receptivos a qualquer estímulo em que haja forte conteúdo de imagem visual e auditiva, as crianças tornam-se presas fáceis das telas, ao mesmo tempo em que demonstram, instantaneamente, reação à superestimulação, através de processos que acionam uma desorganização visível de seus corpos físico e emocional.

Há um bombardeio de estímulos e respostas visuais e auditivas que se tornam impulsos elétricos sem conexões passíveis de serem assimiladas pelo corpo mental das crianças. Esse corpo ainda em fase de amadurecimento inclusive neurológico ainda não é capaz de uma elaboração conceitual do que lhe é apresentado através dessa intensidade de imagens visuais e verbais. São informações que não se tornam conhecimento e ficam registradas perigosamente como impulsos que podem vir à tona, como pulsões físicas em diferentes manifestações.

Ocorre um estado de confusão. Possivelmente uma camada de estímulos absorvidos e não integrados geram alterações significativas no comportamento das crianças que permanecem frente às telas. Estado este que pode ser observado em manifestações contínuas de irritação, agitação, impaciência, falta de atenção, agressividade e profundo cansaço corporal, visivelmente demonstrado pela prostração física frente às atividades que mobilizam o corpo. A impressão é que as imagens que penetraram visualmente necessitam ser exorcizadas pela exacerbação da fala, da emissão de sons guturais e movimentos gestuais angulares e segmentados. Os verbos matar, explodir, destruir, e uma série de outros ligados ao contexto de guerra e destruição, fazem parte do vocabulário cotidiano das crianças de hoje.

Tudo o que penetra de maneira desagregadora no corpo físico das crianças pela enxurrada de imagens e sons aos quais são expostas transforma-se numa compulsão representativa do que foi assistido, aparecendo sob intensa manifestação de gestos bruscos, agressivos e violentos na relação com o outro, muitas vezes incontroláveis. Os personagens televisivos, assim como os dos vídeo-games logo se tornam objetos compráveis, objetivo explícito e sedutor para a formação de pequenos consumidores de um mercado perverso e criminoso, desvinculado de qualquer compromisso ético e estético com a pessoa humana. O que importa é o consumo da imagem visual, auditiva, tendo como grande parceiro o público infantil, seres indefesos, que estão se tornando o alvo mercadológico do mundo virtual.

O individualismo, o consumismo, a vantagem sobre o outro, a chantagem, a barganha, o toma lá dá cá, a manipulação dos afetos, a simulação, a agitação, a preguiça e até mesmo o tédio passam a se configurar como modos de ser da infância, aceitos sem nenhuma visão crítica sobre esses temas.

Fora da tela as crianças exigem uma válvula de escape em que possam expressar seus movimentos agitados e descompensados, para que não venham a somatizar no corpo físico, seja pela presença de um cansaço verbalizado como preguiça ocasionada por um rebaixamento da energia vital, seja na forma de sonhos, pesadelos e medos contados de maneira assustada, em que o corpo expressa o gestual brusco, grosseiro e agressivo carregado de fortes conteúdos emocionais.

Essas manifestações que se expressam corporal e verbalmente de maneira descoordenada e agressiva são, na verdade, o grito de alerta dessas crianças em busca de uma sociedade que espelhe em seus adultos olhar consciente e a escuta sensível.

Uma sociedade capaz de se tornar um vaso continente e equilibrador dessa força de vida que, desde seu início, vem sendo, hoje, acelerada e perversamente ativada para um processo que pode gerar complicadores sérios na estrutura psíquica, individual e social. Vale acentuar aqui a imersão das crianças numa estética visual e auditiva completamente dissociada de nossa cultura. Está implícito nessa linguagem de comunicação com as crianças e os jovens um proposital e efetivo colonialismo cultural que corrompe desde o início a inclusão de nossas crianças em sua própria raiz, promovendo a perda de sua identidade cultural.

Esse fato compromete um diálogo verdadeiro que possa vir a ser estabelecido na relação do nosso país com as questões referentes à diversidade cultural presentes no mundo contemporâneo. Estamos sendo chamados a olhar e observar com profunda atenção nossas práticas educacionais. Elas estão a nos exigir um redirecionamento diante da à tensão dessa aceleração, à qual todos estamos expostos. Somos chamados, como educadores, a reconhecer e conhecer essa energia pulsante, anímica, à disposição do crescimento humano.

É preciso aceitá-la como uma dádiva da vida e conduzi-la ao florescimento de uma ação que nos comprometa com a construção de uma humanidade mais consciente de sua responsabilidade para com a vida em si. Estamos, quem sabe, num ponto de mutação, nos descobrindo como seres capazes de escolher o caminho que nos reúna como “humanidade” entendida como um centro movido pela energia da vontade, do amor e da beleza, entrando em harmonia com todos os seres que respiram neste planeta, e por que não ao cosmos, apontando para um alvo como fazem meninos com seus arcos e flechas, para uma civilização que reconhecerá em cada criança que nasce o homem novo que está a caminho.

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