Sem o homem, isto é, antes da História, a natureza era una. Continua sendo, em si mesma, apesar das partições que o uso do planeta pelos homens lhe infringiu. Segundo Milton Santos, para falarmos da relação do homem com a natureza é preciso falar da história dessa relação.
Como o geógrafo ele descrevia,” no começo dos tempos históricos, cada grupo humano construía seu espaço de vida com as técnicas que inventava para tirar do seu pedaço de natureza os elementos indispensáveis à sua própria sobrevivência. Esse pedaço do mundo era a natureza toda de que ele podia dispor, para a renovação de sua vida: espécies animais e vegetais, pedras, árvores, florestas, rios, feições geológicas. Não importava que as trevas, o trovão, as matas, as enchentes pudessem criar o medo: era o tempo do homem e a natureza em comunhão”.
Ao longo do tempo, a história do homem sobre a Terra tornou-se a história de uma ruptura progressiva entre o homem e a natureza, a ponto de colocar em cheque a nossa própria possibilidade de sobrevivência. A ligação do homem à natureza é um tema universal, e podemos dizer, sem sombra de dúvida, que há em nós uma memória celular dessa conexão. Afinal, vivemos na Terra, habitamos um planeta chamado Terra e transcendemos através da Terra.
O Brasil, com sua extensão geográfica, exuberância e diversidade de flora e fauna, envolve todos nós com uma presença ainda muito forte da mãe natureza em nossas vidas. Há pouco tempo, não mais que cem anos, grande parte da população brasileira foi gradativamente deslocando-se do campo para habitar os centros urbanos, o que certamente nos confere ainda uma ligação profunda, um sentimento de ausência de algo que é vital em nossas vidas. Nossas matrizes, indígena e africana, nos repassaram sutilmente um contato direto e cordial com a natureza. É para ela que nos dirigimos buscando reequilibrar nossas forças vitais seriamente ameaçadas pelo sistema civilizatório ao qual estamos submetidos.
A cada dia vamos sendo afastados da relação mais natural e direta com esses elementos, parceiros inseparáveis de nossas vidas, nossos indispensáveis companheiros do cotidiano: a água, a terra, o fogo e o ar.
Nossa matriz indígena é guardiã dos valores que cunharam e ainda cunham o chão do nosso território, mantendo nossa relação de profunda interação com a natureza. Ela reverencia a Terra em seus quatro elementos, considerando-os as quatro consciências ancestrais, os quatro seres que formaram nossos pais e teceram nossas capas físicas.
Para os tupis-guaranis, a Terra é a origem de sua humanidade, sua ancestralidade, suas raízes. Em cerimoniais, eles manifestam sua gratidão em reconhecimento às forças vivas que os elementos representam. Foi a respiração de Deus ou do grande mistério, ou do grande espírito, ou do grande silêncio, o primeiro Tupã que gerou os quatro senhores, soprando a essência. Para eles, a natureza é a doadora da vida. A ela, eles se sentem ligados através da respiração. Somente dessa forma a vida pode fluir em abundância e harmonia. O desequilíbrio acontece quando esse ciclo é cortado, quando o círculo da grande respiração é interrompido, como nos ensina Kaká Werá Jecupé, em seu livro,Terra de Mil Povos.
Nascidos das regiões agrárias, nossas danças, nossos cantos, nossas festas, nossa literatura, nossas celebrações e manifestações culturais são portadores dessa ligação primeira do povo brasileiro com a Terra. Conhecê-los e reconhecê-los como memórias que possam ser traduzidas em responsabilidade na condução de nossa história, é uma questão do nosso tempo, no que diz respeito à relação do ser humano com o seu hábitat. As crianças apresentam uma ligação natural com os elementos da natureza, que se tornam seus brinquedos preferidos quando, passeando ainda pequeninas em parques naturais e estradas não pavimentadas, elas vão encontrando aqui e ali pequenos gravetos e pedrinhas pelo chão. É comum interromperem a caminhada agachando diante de uma pequena borboleta pousada sobre uma planta que somente elas enxergaram, observando atentamente seu lento bater de asas. Mais adiante, uma minhoca, um formigueiro, uma pedrinha, uma pequena flor são motivo de alegres descobertas.
Um menino que por volta dos três anos esmagava com os pés qualquer formiga que percebia no chão, certo dia, avistou uma formiga descendo pelo tronco de uma árvore, carregando uma folhinha verde maior que ela e logo perguntou: “O que ela esta fazendo?” Prontamente, uma criança mais velha respondeu: “Ela esta levando comida para a sua casa!” “Onde é a casa dela?” “No formigueiro!” “Onde é o formigueiro?”
A outra criança se retirou da conversa, e passei a acompanhar a curiosidade desse menino durante algum tempo seguindo atentamente o caminho que a formiga percorria levando seu alimento em direção ao formigueiro. Sem desviar um instante sua atenção, ele assistiu à entrada da formiga levando sua folhinha para dentro do formigueiro e, a partir desse dia, buscou saber como era a casa da formiga por dentro.
Através dos livros, ele entrou em contato com a vida das formigas dentro da terra e transformou sua atitude em relação aos pequenos animais que encontrava em suas caminhadas. Na convivência corpo a corpo com a natureza e seus elementos, os gestos das crianças vão se arredondando, e suas mãos revelam-se mais harmoniosas num corpo que se experimenta espontaneamente, brincando. A criança faz acontecer esse contato com a liberdade que lhe é peculiar, manifestando no corpo e através do corpo sua intimidade com a natureza.
O contato das crianças com a diversidade de materiais que a natureza oferece é um condutor de experiências sensíveis que se estendem sob um território infinito de variedades de texturas, densidade, volume, fluidez, porosidade, solidez, cor e som. Cada material possui sua estrutura interna, que propõe o domínio de habilidades para lidar com sua resistência e sua força. Esses elementos trazem, cada um deles, uma mensagem diferente e especial para as crianças. É bonito observar a entrega com que a maioria das crianças se delicia em explorar nas próprias mãos esses elementos, fazendo surgir brincadeiras em que brotam construções que expressam e fortalecem o domínio de habilidades sensório-motoras em que qualidades afetivas são mobilizadas, acompanhando seu percurso a caminho de uma interação de sentido com a natureza.
Brincando com os elementos - Trailer / Ano 2013 from Escola Casa Redonda on Vimeo.
A ÁGUA
A água, talvez por ser o elemento da natureza com o qual as crianças estabelecem seu primeiro contato ainda no ventre materno, é uma das substâncias de maior atração para a maioria das crianças. Como elemento primário de contato, a água se liga à primeira fase do desenvolvimento da criança, trazendo sensações de acolhimento, sensibilidade e afeto.
É capaz de produzir relaxamento e purificação, ajudando a dissolver tensões que as crianças absorvem do meio ambiente e armazenam em seu corpo físico, dificultando a expressão de sentimentos e prejudicando ao longo do tempo o seu contato consigo mesmo e com o outro. Além dessas características, o planeta que nós habitamos, embora se chame Terra, possui aproximadamente 70% de água. Essa mesma proporção se dá dentro do nosso corpo físico.
Ao contatar a qualidade líquida e sem forma da água, as mãos das crianças vão conhecendo e reconhecendo sensações táteis agradáveis, ativando explorações cada vez mais desafiadoras. A água, com sua constituição fluída, propicia infinitas possibilidades de contato com o corpo, e é nessa via que as crianças brincam, ora entrando de corpo inteiro em bacias de água, motivo de intensa alegria, ora enchendo e esvaziando recipientes que possam contê-la, aprendendo a preencher diferentes tipos de latas, garrafas, potes e outros objetos, buscando a proporção correta para não derramá-la.
Através da pintura com variadas cores e pincéis de diferentes espessuras sobre papéis e texturas diversas, o domínio do uso desse elemento líquido, agora colorido pelos pigmentos, vai sendo incorporado por meio de singulares explorações. Muitas vezes essas pinturas ultrapassam o papel estendendo-se sobre o próprio corpo, face à suavidade do toque do pincel e da sensação prazerosa desse contato.
A mistura da água com diferentes vegetais e com a própria terra produz um tingimento colorido que permite a experimentação de variadas cores, motivo de descobertas das diferentes gradações e composição das mesmas. Essa mesma exploração se repete à medida que elas fazem suas misturas, transformando giz colorido em pó pela utilização de pequenos raladores e pilões.
Diversas cores de giz e de papel crepom são processadas pelas próprias crianças, para a descoberta das cores em misturas com a água. Essas experiências perpassam um contato concreto sobre diferentes estados em que a matéria pode ser transformada, e mais tarde certamente esses conceitos serão mais bem compreendidos porque vividos por esses exploradores natos. Como pequenos alquimistas em suas repetidas brincadeiras de misturar elementos e de assistir a suas transformações, as crianças estão sempre buscando descobrir alguma fórmula nova para suas poções.
A concentração e a compenetração estão sempre presentes nesses momentos de livre exploração. Uma vez feitas suas misturas, garrafas transparentes são utilizadas para conter as variações de cores descobertas. Além de se identificarem com as cores de que mais gostam, as crianças adoram comparar as cores de suas garrafas coloridas com a dos companheiros, notando pequenas diferenças em relação aos matizes que conseguiram criar.
É interessante observar a preferência de algumas crianças desde muito cedo por uma cor que sempre passa a estar presente nos desenhos, nas pinturas e em outras atividades em que há possibilidade de escolher cores. Essas atividades permeiam todo o verão, o início do outono e a primavera, e vão sendo ampliadas com novos elementos que podem ser acrescentados pelo professor para desafiar outras possibilidades de utilização dos materiais que vão sendo descobertos.
Águas perfumadas por flores, folhas e ervas ligadas às estações do ano são atividades que se apresentam sob várias configurações a partir do interesse que brota de uma criança ou do grupo. Essa é a riqueza infindável de um currículo que nasce do contexto vivo, em que o ambiente da natureza é propiciador de desafios, e crianças e professores se juntam em descobertas que representam aprendizagens significativas para ambos.
Nos momentos em que as perguntas surgem, os livros passam a ser consultados para ampliar conhecimentos, resultando no exercício da capacidade nata das crianças de investigar, de querer saber como as coisas acontecem, buscando responder com informações precisas e adequadas as perguntas levantadas por elas. Esse é o processo de aprendizagem que ocorre no dia a dia da nossa prática educativa, e esse é o grande desafio na formação do professor de educação infantil: manter vivo o espírito indagador, a inocência do primeiro olhar, o maravilhar-se, o querer saber como é, matriz humana do nosso percurso pela vida. Deveria fazer parte da formação do professor a construção desse olhar que verdadeiramente vê, que se deixa ser tocado pela beleza singela da variedade de formas que nos introduzem à geometria viva presente na natureza. Materiais simples e de baixo custo, como uma bacia de água ou uma torneira nas proximidades de um tanque de areia ou de uma área com terra, garantem para essa faixa de idade o grande e disputado espaço da brincadeira. Buracos, montanhas, bolos, comidas, pistas, castelos de princesas, bruxas, casas de animais, cavernas, armadilhas, pontes, poços, barragens, canalizações de rios e de lagos, brotam sob infinitas formas.
Verdadeiras engenharias são projetadas pelos grupos com a participação de cada um, permeadas por conversas e descobertas de instrumentos que os auxiliam a realizar suas construções. Brincando com a água, as crianças descobrem de um lado sua suavidade e, de outro, buscam formas de contenção da força que esse elemento também apresenta, fazendo surgir sistemas criativos, diferentes engenhocas que descobrem para ordenar o trajeto da água, utilizando-se de materiais que possibilitam sua circulação e seus deslocamentos como mangueiras transparentes, canos de PVC e bambus. Nessas brincadeiras, os educadores estão próximos das experimentações das crianças, sempre atentos a desenvolver como princípio o uso dos elementos, sem que haja desperdício.
Essencial para a limpeza do corpo, assim como para os rituais de purificação após brincadeiras em que a água se encontra presente, observamos uma atmosfera de tranquilidade entre as crianças, como se o contato com esse elemento as auxiliasse internamente na harmonização de suas próprias águas. Geralmente, ao concluírem essas atividades, que muitas vezes agregam um grupo de crianças de várias idades, a maioria parte para atividades individuais mais recolhidas e calmas.
Nos dias quentes, de sunga e biquíni, as crianças aprendem a construir chuveiros de lata e bolas d’água de bexiga, brincadeiras que as deixam em completa euforia, ecoando entre elas gostosas gargalhadas que contagiam todos os que estão próximos. Regar as plantas, lavar os objetos e as pequenas peças de roupa que utilizam em suas brincadeiras e colocá-los para secar ampliam a oportunidade de contato com a água, introduzindo atitudes de cooperação e manutenção dos materiais limpos. Nos momentos em que decidem preparar sucos de frutas para o lanche, criam bancas de limonada, e, em outras situações, surgem restaurantes nos quais são preparadas saladas de alface, colhidas da horta, e devidamente lavadas.
Experiências com os diferentes estados em que a água pode se apresentar são preparadas pelos professores e ansiosamente esperadas pelas crianças que estão sempre curiosas para descobrir o porquê das transformações.
Diferentes culturas, das mais antigas às mais recentes, falam sobre o simbolismo da água, expressando as várias maneiras como ela foi experienciada pelos homens. Para muitos povos, ela constitui a forma substancial de manifestação da origem da vida, símbolo de fertilidade e purificação. Os significados simbólicos da água se reportam a três temas básicos: a origem da vida, o meio de purificação e a substância regenerativa.
O grande fascínio das crianças pela água demonstra sua necessidade de manter contato com esse elemento e a consequente importância de defendermos a sua presença como uma atividade indispensável num espaço de educação infantil. Um belo exemplo do poder da água é expresso por um erudito chinês do século XI, citado por John Blofeld, em seu livro The Wheel of Live:
[...] A água é submissa, mas conquista tudo. A água extingue o fogo, ou, vendo que pode ser derrotada, escapa como vapor e toma nova forma. A água carrega a terra macia, ou, quando desafiada pelas rochas, procura um caminho em torno… Satura a atmosfera de modo que o vento morre. A água é humilde, mas não submissa, ela cede passagem para os obstáculos com uma humildade enganadora, pois nenhum poder pode impedi-la de seguir o seu caminho traçado rumo ao mar. A água conquista submetendo-se, nunca ataca, mas sempre ganha a última batalha.
A TERRA
A terra é outro elemento que atrai as crianças em suas brincadeiras. Caminhando, correndo, pulando, rolando, deslizando em terrenos planos e inclinados, elas experimentam subidas e descidas, criando rampas e obstáculos que desafiam o equilíbrio do corpo. Do contato com o elemento terra brotam misturas com a água e surge a lama, cuja textura gelatinosa para alguns suscita uma estranha rejeição por ser identificada como algo sujo, e, para outros, é uma experiência corporal de total expansão, ocorrendo uma soltura que muitas vezes é seguida da vontade de ir ao banheiro.
Lambuzam o corpo todo manifestando sensações de extrema alegria, muitas vezes contagiando as crianças que inicialmente rejeitaram a experiência. Nas atividades com o barro e argila, elementos que permitem construções tridimensionais e, novas formas de representação, a terra, assim como a água, expande-se para uma experiência sensorial por todo o corpo. Assistimos com frequência às crianças cobrindo seus pés e pernas com areia, brincando de esconder partes do corpo. À medida que vão experimentando essas sensações, algumas pedem para ser enterradas, deixando apenas a cabeça do lado de fora e ali permanecem um tempo sem se mexer até que seu próprio corpo espontaneamente expresse o movimento de saída, libertando-se do peso da areia. Essa brincadeira é muitas vezes repetida por crianças que parecem ter necessidade de um espaço que as contenha.
É no corpo e através do corpo, em contato direto com a pele, a superfície que delimita a relação do corpo com o mundo externo, que a criança experimenta sensações que vão dando o contorno de sua individualidade, construindo e estruturando conhecimentos corporais e psíquicos significativos.
Seja na terra ou na areia, buracos profundos vão surgindo, ativados pela fantasia das crianças de chegarem até o fundo da Terra, quem sabe chegar até o Japão, do outro lado do planeta. Ao lado das escavações cada vez mais profundas, surgem as montanhas elevadas, que se transformam em vulcões de onde brotam o fogo e a fumaça que vêm do centro da terra. Essas brincadeiras são vividas e repetidas por diferentes idades que vão se apropriando a cada ano de instrumentos e habilidades mais adequados a lidar com esses elementos, terra e fogo, realizando seus projetos sempre acompanhados por um professor que acolhe as experiências e está atento aos aspectos de segurança.
Em quase todas as culturas, a terra foi identificada pelos homens como a matéria-prima da criação. Ela é considerada uma matriz continente de minerais, metais, além de ser o curso dos rios e fecundada pelas chuvas, carregando o símbolo da fertilidade. O caráter sagrado da terra está ligado ao seu papel nutridor de toda a sociedade. A experiência das crianças no preparo da terra para plantar a semente e esperar o momento do crescimento e da colheita desenvolve a noção cíclica do tempo e as etapas que se sucedem a cada fase de crescimento.
Essas atividades colaboram para diferenciações de ritmos, uma vez que cada semente, apesar de receber o mesmo tratamento, traz sua singularidade no processo de desenvolvimento. Aprendem as crianças, aprendem os professores a lidar com a ciclicidade e singularidade do próprio processo de desenvolvimento humano. Esses processos, vividos concretamente, são portadores de conhecimentos que, uma vez incorporados, serão indicadores importantes em aprendizagens futuras que envolvem a capacidade de abstração das crianças.
O manuseio do barro, agregando a ele sementes, flores, gravetos, pedras e outros elementos encontrados nas caminhadas por terrenos baldios, onde a natureza ainda se apresenta com sua vegetação natural, manifestam expressões singulares onde uma estética harmoniosa aparece em diferentes formatos.
O tanque e as caixas de areia são presenças fundamentais dentro das atividades propostas para as crianças na Casa Redonda, pois são espaços insubstituíveis para brincadeiras grupais e individuais nessa idade. A qualidade da areia colocada nesses recipientes precisa de cuidado extra. A areia de rios é portadora de uma poeira e de uma consistência que não permite a realização plena das construções das crianças.
Usamos uma areia especial que, pela presença do sal, como a areia das praias, nos permite elaborações em três dimensões, diversificando e ampliando os desenhos. Entrando em contato com o trabalho de “sandplay”, método terapêutico criado por Dora Kauf na Suíça, utilizamos o modelo da caixa de areia e de objetos como mais um recurso expressivo a ser disponibilizado para as crianças. Surgiu dessa experiência outra possibilidade de as crianças expressarem suas histórias movidas pela presença de diferentes objetos. Em alguns momentos elas brincam sozinhas, e, em outros, surgem companheiros que passam a compartilhar a brincadeira compondo cenários animados pelos objetos que tomam vida e se expressam em contínuo movimento.
O FOGO
O fogo, com sua luminosidade, com a dança de suas labaredas e o estalar das madeiras, fascina as crianças como a luz atrai as mariposas. Em uma noite de acampamento, junto à fogueira, uma criança verbalizou que “gotinhas de luz” estavam subindo para o céu. Diferente da água, o movimento do fogo se eleva, e rapidamente as crianças percebem essas qualidades específicas dos elementos.
Em algumas culturas, o fogo é identificado com o Sol, a energia que irradia luz e, através de seus raios, fecunda, purifica e ilumina o mundo. O contato das crianças com o fogo ocorre inicialmente com o preparo do lanche, que, no tempo do frio, se organiza a partir do recolhimento dos gravetos caídos das árvores, transformando-se em lenha para um fogão improvisado, onde da ação do fogo surge o verbo cozinhar: o alimento é preparado para depois ser distribuído para todos. Banana, abacaxi, batatas, milho, sopa de verduras, ovos cozidos, queijo coalho e outros alimentos fazem parte dos lanches preparados com as crianças.
Diante desse elemento, as crianças novamente assumem uma atitude de pequenos alquimistas, atentos e compenetrados, querendo ver as transformações que o fogo opera em diferentes objetos, observando com intensa curiosidade o que derrete ou o que endurece sob a ação do calor. Sendo um dos elementos que demanda muita atenção e cuidado, é justamente esse caráter de risco que atua como um importante exercício de concentração e coordenação para muitas crianças.
A aquisição desse reconhecimento do risco trazido pelo próprio elemento age como uma experiência de autocontrole que repercute positivamente na ação daquelas crianças que necessitam viver situações que envolvam aceitação de limites e controle de gestos impulsivos.
A atenção e o cuidado passam a ser atitudes incorporadas através dessa atividade. Os meninos apresentam grande interesse por esse elemento, o que pode ser explicado pela presença do risco, pela possibilidade de experimentar as transformações que o fogo opera nos diferentes elementos, acompanhado por desafios que exigem a limitação concreta sobre a impulsividade dos seus gestos.
O fogo e a água se associaram numa brincadeira inventada por uma criança de cinco anos, quando resolveu experimentar o que aconteceria se pingos de vela acesa caíssem sobre a água num pote de barro. A criança demonstrou enorme satisfação ao descobrir que os pingos de cera eram capazes de recobrir toda a superfície da água, tornando-se, após o resfriamento, uma matéria sólida surpreendente.
Acompanhando essa atividade, o professor preparou para o dia seguinte diversas velas coloridas e potes de barro com diferentes tamanhos sobre a mesma mesa em que essa criança havia feito a sua experiência. Essa atividade tomou conta de outras crianças que, trocando experiências entre si, fizeram surgir diferentes composições de cores e formas, cada vez mais complexas.
Esse é um exemplo da relação do professor e da criança na Casa Redonda: ambos convivem em atitude de observação, experimentação e descoberta, cabendo ao professor esse olhar atento, capaz de gerar elementos que possam trazer novos desafios, intervindo como sujeito criativo numa ação que ampliará a margem de conhecimento das crianças, no momento apropriado e na medida adequada à possibilidade de exploração delas. A atividade com velas e água é hoje uma das mais procuradas e disputadas por crianças de todas as idades, devido aos desafios presentes na condução da experiência com esses elementos que exige controle motor, concentração, determinação e muito cuidado. Há um entusiasmo durante a execução dessa brincadeira, principalmente com a surpresa do resultado, que motiva sempre uma satisfação partilhada com os companheiros: “Olhe o que eu fiz!”.
Brincando, as crianças se introduzem em diferentes abordagens do conhecimento que mais tarde são nomeadas como “ciências”. A alquimia precedeu a nossa ciência, e as crianças em suas explorações dos elementos da natureza reconstroem esse percurso do conhecimento, cuja essência é a construção delas mesmas, como seres capazes de experimentar e serem experimentados pela própria vida.
O AR
Sua qualidade diferenciada dos outros elementos está na capacidade de penetrar suavemente nos espaços mais escondidos e não ser visto. É ele que entra e sai por dentro de nós a cada instante, nos fazendo comungar de um mesmo gesto, a respiração, a primeira troca que faz o recém-nascido com o mundo.
A voz humana está diretamente ligada ao elemento ar. A emissão sonora e sua entonação adequada perpassam o ritmo respiratório criando aberturas sensíveis que ampliam a oralidade e musicalidade das crianças. Os cantos e as brincadeiras cantadas do repertório da música tradicional da infância são uma atividade presente no cotidiano das crianças da Casa Redonda, por se tratar de um elemento fundamental na construção do universo sonoro e sensível do ser humano.
Através do sopro, as crianças entram em contato concreto com a presença do ar. Soprar a vela de aniversário, soprar bolas de sabão, encher bexigas de ar, soprar pequenos fiapos de algodão ou de paina se transformam em brincadeiras ampliadas para o sopro de diferentes flautas e apitos que imitam os sons de nossos pássaros.
Brinquedos que utilizam o ar para serem colocados em movimento são construídos com as crianças, que imediatamente captam a força desse elemento. No tempo dos ventos, olhar o movimento das folhas nas árvores, e, no outono, a queda das folhas, quando surgem as rajadas de ar, são oportunidades de um contato com esse elemento da natureza que principalmente se torna presente para as crianças quando promove algum movimento.
Deitadas sobre a relva, por exemplo, olham o movimento das nuvens embaladas pela alternância de direções do vento que forma diferentes desenhos, criando “bichos esquisitos”.
A brincadeira da pipa foi a nossa primeira pesquisa com o objetivo muito claro de mostrar a pais e professores que brincar é uma linguagem de conhecimento, e que há muitos saberes acontecendo nas brincadeiras espontâneas das crianças em sua relação com os elementos da natureza.
Construir pipa, construir aviões de papel, paraquedas, cataventos, barangandões, peixes voadores e mais uma centena de brinquedos que lidam com o ar envolve habilidade manual e, principalmente, a precisão geométrica sem a qual o brinquedo não funciona.
Dominar a construção de um brinquedo utilizando as próprias mãos como, por exemplo, os aviões de papel e outros é um fazer desafiador, que envolve persistência e constante aperfeiçoamento, resultando no bom desempenho da brincadeira, que se inicia desde a etapa do preparo.
A relação entre começo, meio e fim presente nessas brincadeiras se torna uma experiência concreta formadora de atitudes relevantes para a avida da criança como aprendiz. Através de nossas pesquisas reconhecemos, a ciclicidade presente nas brincadeiras tradicionais e a relação profunda entre as brincadeiras das crianças e o ritmo da natureza com suas estações. Assim, passamos a observar na Casa Redonda o aparecimento de brincadeiras que surgiam através de uma criança e se irradiavam por todas as outras, como se um fio comum a elas tecesse aquela manifestação espontânea.
Seguimos durante alguns anos a sincronicidade entre as estações e o aparecimento de certas brincadeiras, que brotavam durante aquele período do ano, sem se repetir. Ao começar a estação dos ventos, observamos a solicitação das crianças para a construção de aviões de papel, que vão se prolongando durante um período que chega até a primavera, em que aprendizagens sobre diferentes formatos de aviões, paraquedas, dragões e peixes voadores acontecem ativadas pelo interesse das crianças em atingir alturas cada vez maiores.
A criação de asas, a vontade de voar correndo com capas que se movimentam com o vento ou apenas uma vara de bambu com uma tira comprida de papel crepom esvoaçando no ar fazem parte do repertório de brincadeiras que acontecem no tempo dos ventos.
Leituras sobre a mitologia em que aparecem seres alados, assim como o percurso do homem em sua vontade de voar, construindo seus primeiros aparelhos voadores até chegar às naves espaciais, são do interesse das crianças, e cabe ao professor ampliar o tema abordando esses dois tipos de conhecimento, a mitologia e a ciência.
Com a primavera, a música, o teatro, as danças, os jogos brotam de uma hora para outra, como expressão de um movimento de expansão corporal, uma espécie de florescência individual e grupal. Nesse período, a música e as brincadeiras carregam uma força vital e rítmica bastante diferenciada do que ocorre, por exemplo, no outono e inverno, agregando espontaneamente um número maior de crianças participando das atividades.
A música e a dança brotam como um movimento espontâneo. Uma vez que as crianças solicitem aos professores, eles deverão ter recursos próprios para desenvolver um repertório de qualidade focado na música tradicional da cultura infantil, o maior espelho e a expressão mais sensível de Brasil”, segundo Lydia Hortélio. Para ela, praticando essa música, estaremos restabelecendo o laço afetivo com nossa língua, a língua-mãe musical, que nos brinquedos cantados carrega o encanto e o mistério da infância da raça e dos arquétipos de nossa cultura. Uma das formações pela qual passa o professor da Casa Redonda é a aprendizagem de um repertório de música, dança, histórias e brincadeiras que os faça entrar em contato com o universo sensível da cultura brasileira, na sua melhor qualidade, buscando se entender como um brincante que sabe dançar, cantar, brincar e contar história quando solicitado. Essa formação é contínua e constantemente ampliada.
As manifestações corporais das crianças se alternam em atividades, ora mais introvertidas, ora mais extrovertidas, acompanhando suas singularidades em sintonia com a mudança das estações do ano, que corresponde à presença de uma determinada qualidade solar agindo sobre o organismo humano. É constante nos surpreendermos com o aparecimento repentino de uma brincadeira que contagia a maioria das crianças. A chegada ao mês de abril, quando inicia o outono, coincide, por exemplo, com brincadeiras em casas construídas com caixotes ou tecidos que formam pequenos abrigos, lugar de aconchego e recolhimento, espalhados em diferentes espaços. Essas e muitas outras observações fazem parte do acervo de nossa pesquisa e estudo para fundamentar, através da nossa prática, o reconhecimento de uma relação de sintonia natural entre a criança e os elementos da natureza, consciente da importância desses registros como fontes que deverão nortear e ressignificar a infância.
Portanto, ao brincar com a água, a terra, o fogo e o ar, as crianças estão entrando em contato com símbolos fortes que acompanham o imaginário da humanidade desde sempre como marcos da história de nossa evolução. Ao entrar em contato com esses elementos, seu corpo faz ressoar a estação primeira da matéria através da qual o homem primitivo apreendia o Universo. Como diz Carl Jung, em Psicologia y Educación: “A criança vive um mundo pré-racional e, sobretudo, pré-científico, mundo da humanidade que existia antes de nós. É nesse mundo que mergulham nossas razões e é por essas razões que crescem as crianças”.
Brincar com os elementos é fundamentalmente criar raízes com a Terra, é vincular-se à natureza compartilhando de um acolhimento mútuo, vivido entre dois entes misteriosos – o Homem e o Universo:
Somente o vivido sobrevive. Somente o vivido no mais profundo de nossas células nos faz evoluir. Nem o entendimento nem a compreensão são capazes disso. Só o vivido é transmissível. É por esse vivido apenas que nós podemos agir sobre o mundo que nos rodeia. Se tu te transformas, a matéria também é obrigada a transformar-se. Um anjo me perguntou um dia: Tu compreendes a minha palavra? Não a entendas, não a compreendas. Mas, vive-as. Gitta Mallasz
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