Um jardim da infância

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Um jardim da infância

As palavras que se seguem do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, nos permitiram descobrir uma orientação para caminharmos ao encontro de uma compreensão mais profunda da natureza simbólica presente na linguagem universal das crianças: o brincar.

“O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada, todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar. A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja. A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, ordena, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está em baixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo...”

A natureza carrega dentro de si um forte conteúdo simbólico na gratuidade e nas possibilidades com as quais se apresenta como fonte inesgotável de experiências pelas quais os seres humanos cumprem sua história. Ao pensarmos em abrir um espaço de educação para crianças é inadmissível não se dar atenção a presença da Natureza como o grande cenário através do qual elas movimentarão o corpo e irão conviver sensivelmente com os elementos relacionados à própria constituição da vida humana.

A constatação da ausência do contato com a natureza nas nossas grandes cidades, a inexistência de espaços de natureza dentro da maioria de nossas instituições educacionais ou o não aproveitamento dos espaços existentes, a diminuição das áreas de convívio de crianças com outras crianças de diferentes idades em parques, em quintais para brincar livremente, são situações geradoras do descompasso a que estamos assistindo na nossa sociedade: a infância vive um tempo-espaço dissociado da natureza, encontrando-se cada vez mais ameaçada de ser isolada de seu hábitat natural. A consciência desse fato opera como um agente ativador de uma reflexão que se torna presente e urgente para os educadores comprometidos com a sobrevivência da espécie humana e que acreditam na existência de uma cultura da criança, um modo próprio e singular de apropriação do mundo, sendo a natureza o seu chão.

Sobre esse chão a criança se inicia no domínio de sua língua universal: o brincar. Essa língua pertence à cultura humana, e a natureza dotou a criança de uma maestria sem par nessa linguagem de conhecimento. Cada gesto do corpo em movimento – brincando – vai revelando o sentido humano de viver e conviver numa mesma casa – o planeta Terra. Por que não aceitarmos a gratuidade com que a natureza a nós se oferece e partilharmos da experiência de sermos também natureza, uma vez que dentro dos nossos corpos estão presentes todos os elementos que a compõe? Nela convivemos com nossas primeiras experiências sensíveis sobre a beleza, sobre a harmonia, sobre a diversidade, a alternância da luz e da sombra, a calma, a serenidade, o silêncio.

O encantamento do canto dos pássaros, das cores das flores, a variação das estações com seus ciclos, a multidão das formas que nos preenchem como parte de uma geometria fantástica através da qual simetrias e assimetrias desfilam sob nossos olhos, tudo isso e muito mais poderíamos aqui registrar a partir da experiência sensível de cada um de nós diante do que chamamos natureza. Por que então não garantirmos às crianças, por que não disponibilizarmos a todos esse hábitat privilegiado para nos iniciar na grande aventura da consciência que é a nossa vida?

A Casa Redonda acredita na importância desse contato para o desenvolvimento de um ser humano capaz de integrar dentro de si a comunhão verdadeira com esse hábitat, do qual recebe a Terra, a Água, o Fogo e o Ar como elementos primários para sua sobrevivência, além de outras fontes vitais a serem descobertas e reveladas na medida em que o homem seja capaz de captar dimensões de outros níveis de realidades, talvez mais sutis, presentes no Universo. Muitos autores passaram e passam por nossas constantes leituras. Reflexões sobre os seus pensamentos sempre foram pautadas a partir de indagações que se faziam presentes em nossa prática diária, numa constante necessidade de ampliar nossa compreensão em relação ao que chamamos com propriedade de cultura da criança.

Reunimo-nos aos poetas e pensadores que há muito vêm apontando o brincar na categoria de um ato sagrado, por ele ser continente do mistério da vida, de um segredo que se encontra presente na unidade e multiplicidade dos infinitos gestos através dos quais as crianças vão se apropriando do mundo à sua volta, dando início à construção do humano rumo à aventura da consciência. É o poeta e filósofo alemão Friedrich von Schiller quem diz: “O Homem só é inteiro quando brinca e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem”. Elevando o jogo à categoria do sagrado, Platão também já nos alertava para tratarmos com seriedade o que é sério. Fernando Pessoa, num trecho de “O Guardador de Rebanhos”, tocou-nos profundamente marcando nosso caminho sensível em direção a uma síntese do que é o brincar:

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, Graves como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão.

A solenidade, a seriedade, a compenetração, o sentido simbólico e outros sentidos são aqui reverenciados, reunindo deus, o poeta e a criança. No gesto do brincar, o poeta confirma a presença da dimensão divina e humana como matrizes do processo criador do homem na criança. A dimensão sagrada nos é mostrada pela presença de sentido e na restauração do Elo. Aqui o rito do brincar se assemelha aos atos da criação, seja de um deus ou de um poeta, confirmando a analogia que podemos estabelecer entre raízes comuns ao brincar e à arte. Ambos nos parecem nascer de uma mesma necessidade – o tornar-se humano. Ambos participam do mesmo impulso em direção à expressão sensível de si mesmo. Ambos tocam sutilmente as notas de uma linguagem da alma.

A diferenciação se coloca apenas nos níveis de realidade expressos pela cultura da criança e pela cultura do adulto. Como todas as coisas simples têm algo que escapa à descrição, e entendendo a arte como o meio através do qual a história e o povo tomam consciência de si próprios, ficamos com as palavras de Andrei Tarkovski quando ele diz:

“Ser artista é aprender a servir. A arte é um serviço e não uma auto-afirmação. O mais importante é manter-se a si próprio. A exigência da liberdade, de afirmação de nossa interioridade é vital para o homem. Não consigo compreender a vida sem conteúdo espiritual, sem liberdade de pensamento, sem liberdade de criação. Extirpar do homem o espírito de criação autêntica, da verdadeira arte, arrisca-se a acabar por destruir a própria estrutura social que construiu”.

Se ser artista é aprender a servir, ser criança é aprender a vir a ser, um ser em criação. Se nos colocarmos em uma escuta e um olhar sensíveis diante de uma criança brincando, vamos recordar e concordar com a verdade de “O Guardador de Rebanhos”. Assistiríamos sob esse novo olhar com que maestria as crianças se entregam ao brincar, convivendo com um tempo sem tempo e um espaço fora do espaço do cotidiano, onde vários níveis de realidade se cruzam, inaugurando um lugar próprio, extraordinário que transcende qualquer esfera do utilitário, atuando como uma espécie de ponte da imaginação humana em sua direção espontânea à realização do “sim à vida”. Definir o brincar através de uma linguagem discursiva é uma tarefa impossível. Sempre há um desconforto, um incômodo de não chegarmos à plenitude. Estamos sempre fadados a reduzir em palavras uma linguagem cuja verdadeira compreensão se processa de forma una, através de uma síntese do corpo e da alma em movimento. Nesse trajeto em busca cada vez mais de reconhecimento e conhecimento voltados sobre a nossa experiência na Casa Redonda, encontramos em Carl Gustav Jung e seus escritos referências como respostas significativas para nossas reflexões, acompanhadas de conversas pessoais com o professor Pethö Sándor, continuadas em nossos encontros com Paulo Machado. Autores como Anísio Teixeira, Agostinho da Silva, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Lauro Oliveira Lima foram pessoas com as quais tivemos o privilégio de manter contato pessoal, recebendo delas em primeiro lugar a integridade entre seus pensamentos e sua vida, e o consequente entusiasmo de apostarem numa educação na qual a liberdade de ser estava diretamente ligada ao compromisso com a vida expressa em cada indivíduo.

Com eles comungamos o amor ao Brasil, enquanto vozes que afirmam uma educação que acolha todos os habitantes deste país singular. Um território do mundo onde Oriente e Ocidente estão inaugurando uma síntese entre elas. Ao abrirmos um espaço de educação é importante situarmos nossa consciência no tempo e espaço, na história e geografia do lugar onde vamos cunhar a Terra de uma nova experiência. Experiência inspirada nas raízes culturais locais, criando o chão vivo para caminharmos em direção a uma consciência planetária, onde cada agrupamento humano afirme sua índole própria e possa contribuir para a construção de uma humanidade mais solidária porque mais fraterna.

Assim pensamos e assim nos comprometemos a abrir para as crianças esse espaço de contato diário com a natureza como chão vital de aprendizagens significativas. Assistimos cotidianamente, ao longo desses anos, ao fato de que a simples presença de um espaço de natureza é em si um sistema aberto, campo irradiador de experiências sensíveis que extrapolam qualquer programação curricular. A criança que se encontra nos nossos currículos escolares é em sua maioria um ser sem corpo e sem alma, classificada por idade cronológica, colocada sobre um chão sem terra, aculturada, debaixo de um autoritarismo disfarçado em uma teoria pedagógica, que determina o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado, sem qualquer relação de sentido com a vida das crianças. É a escola sem vida que prepara para a vida. Que vida? A mudança de nome da escolaridade infantil – até então chamada de Jardim da Infância – para Pré-Escola foi um dos marcos no nosso país de uma ideologia alicerçada na linearidade de um futuro imaginário, construído a partir de um presente abstrato, que gradativamente vem comprometendo o desenvolvimento harmonioso da espécie humana, desrespeitando seu ritmo e seus ciclos.

Carregando dentro de si os recursos próprios para o seu processo de desenvolvimento físico, emocional, mental e espiritual, a espécie humana se vê traída em sua essência quando desenraizada. O ápice dessa atitude perversa tem como resultado a absurda formalização da lei dos nove anos de escolaridade do ensino fundamental, que desloca a criança de seis anos para o ensino fundamental, como um objeto qualquer exposto a critérios cuja fragilidade de argumentação não convence nenhum educador que saiba refletir sobre sua experiência de convívio direto com crianças. Criou-se na verdade uma ruptura num ciclo de desenvolvimento da infância quando justamente esse ciclo básico de formação necessitava de medidas que inaugurassem uma nova etapa no reconhecimento de sua importância como núcleo gerador da saúde física e psíquica de nossa espécie.

Descoladas de nossa realidade, as leis pautadas sob a pressão das estatísticas e dos rankings corporativos, hoje internacionais, imprimem burocracias que anestesiam o sistema, desviando e silenciando reflexões apropriadas às necessidades reais do processo do desenvolvimento humano da criança e do adolescente. Uma lei inteligente aumentaria mais um ano na escolaridade do ensino fundamental, o que favoreceria uma maturação emocional e mental significativa dos adolescentes para entrada no ensino médio e posteriormente na universidade. Essa ação inadequada merece ser repensada para que não tenhamos sérios comprometimentos futuros no desempenho dessas crianças que estão sendo conduzidas a acelerações inadequadas em seu processo de desenvolvimento. Essa lei, uma vez aplicada, sacrifica a infância em obediência a necessidades ditas econômicas, sociais e políticas, que segundo Lizete Arelaro, diretora do Departamento de Educação da Universidade de São Paulo, resultou no aumento de 400% da clientela das escolas particulares e apenas 15% das escolas públicas. Em sua compulsão por formalizar e quantificar, a ciência da educação vem esquecendo que os sujeitos de sua ação são seres vivos que cada vez mais vão se tornando invisíveis, cedendo lugar aos dados estatísticos, às formulas, aos programas e projetos que se transformam em leis direcionadas de cima para baixo.

Oxalá seja no século XXI que se inicie o tempo da história humana em que se reconheça a existência da cultura da criança. O velho conceito de educação, de “preparar para a vida”, subjacente à maioria das escolas brasileiras, está presente nos nossos referenciais curriculares, nos nossos currículos universitários com raras exceções, afirmando o desconhecimento de quem é a criança, comparando-a redutivamente ainda a um adulto em miniatura. Sendo assim, elas são objetos e não agentes do seu processo de aprendizagem. Indefesas, as crianças resistem, heroicamente em sua rebeldia, em sua indisciplina, em seus nãos que vêm confundindo professores, psicólogos e pediatras, quando as famílias já esgotaram seus arsenais proibitivos e punitivos, e a televisão cumpriu o seu papel de prendê-las passivamente a uma tela ilusionista, em que vão sendo forjados gestos de brutalidade, de violência, respostas de um corpo que foi aprisionado, mutilado e estigmatizado pela sociedade como criança-problema, criança hiperativa etc. Teria a natureza tão sábia em sua organicidade se equivocado na criação da espécie humana?

O que está ocorrendo em nosso processo de educação que não vem respondendo aos anseios de harmonia e equilíbrio em nossa sociedade dita civilizada? Onde se encontra o brincar, esse fazer e ser da infância que, na verdade, é a porta de entrada do exercício de liberdade, em que o elo entre o mundo interno e externo vai sendo tecido de uma forma espontânea e criativa, integrando os corpos físico, emocional, mental e espiritual? Onde se encontra, em nossas escolas, o espaço das brincadeiras próprio da cultura infantil, como forma de conhecimento vinculador e, portanto integrador, que inclui dentro dele todas as diversas linguagens de expressão e representação na relação da criança com seu entorno?

Onde se encontram a alegria, o entusiasmo dessa pulsão de vida que corajosamente cria para si própria contínuos desafios que operam conquistas diárias direcionadas à sua sobrevivência, em seu caminho em busca de si mesmas? Eis a grande questão da educação infantil: compreender a língua das crianças, que em sua essência expressa a linguagem humana em sua verdade.

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