Eh – Boi – Eh – Boi! Encantado louvado seja! Além da festa a fé: fazer do fardo a leveza. Pele de tambor pega som no calor do fogo. Dançar o Boi é viajar na ancestralidade. O encantador Mestre Teodoro do Boi do Maranhão
...”Foi fadado, justamente no Brasil, possuir numa forma geométrica de coração e haver um ritmo palpitante em toda a sua raça, sobretudo no nordeste. Esse sentido de ritmo, de coração, essa unidade de movimento, esse metrônomo tão sensível. Meus amigos, foi com esse pensamento que eu me tornei músico, foi por isso que eu me tornei um escravo profundo e eterno da vida do Brasil, das coisas do Brasil. E como não tenho o dom da palavra nem da pena, mas tive o dom do som e do ritmo, transponho em sons e ritmos essa loucura de amor por uma pátria. Nunca na minha vida procurei a cultura, a erudição, o saber e mesmo a sabedoria nos livros, nas doutrinas, nas teorias, nas formas ortodoxas, nunca. Porque o meu livro era o Brasil, não o mapa do Brasil na minha frente, mas a terra do Brasil onde eu piso, onde eu sinto, onde eu ando, onde eu percorro. Cada homem que eu encontro no Brasil representa uma forma estética na concepção musical, cada pássaro que acode ao meu ouvido, é um tema aonde se junta a outros temas invisíveis, imperceptíveis e abstratos para tornarem forma física em forma sonora, em forma de música, música de arte, arte livre como a nossa natureza, arte independente como são os pássaros do Brasil, árvore sentimental como são os homens da nossa terra. Heitor Villa Lobos
Villa Lobos, nas Cirandinhas e Cirandas que ele chamou de Brinquedos de Roda, nos convida a compartilhar de uma sonoridade nascida do respeito aos sons da terra, a música que brota da relação profunda do povo com a natureza da qual faz parte e através da qual sobrevive manifestando em canto, em dança e em suas festividades o sentimento de reverência ao seu lugar de origem, pedaço da Terra que o acolhe e comunga sua existência.
O povo como entidade nacional, tal como o indivíduo e a família, é uma criação singular, recriando-se sem cessar em novas composições, mas constituída a partir da herança de seus antepassados. São essas raízes que não podemos negar, sob o perigo de ruptura da nossa história, com consequente perda de nossa memória. Todo o avançar para o futuro de um povo terá de reconhecer o seu longo passado histórico, fruto de vivências humanas imbuídas de valores que marcaram épocas distintas, porém permeadas por significados que pertencem ao acervo humano em busca constante de dar sentido a sua história no tempo.
A humanidade traz uma experiência acumulada que segue passando de pai para filho, de mestre para aprendiz, de professor para aluno e de inúmeras outras maneiras há vários milênios. O que hoje pensamos como inovação surge a partir de um imenso saber já adquirido. Se não fosse assim, a cada geração estaríamos começando tudo de novo. Importa considerarmos a tradição como o lastro cultural indispensável à realização de novas descobertas e inovações.
Tradição e invenção podem se tornar forças complementares, como nos diz Victor Leonardi. A valorização da inventividade, segundo ele, não resulta de uma vocação frívola para as novidades, do capricho e da moda. É preciso não esquecer que o novo não surge do nada, do grau zero do conhecimento.
Essa reflexão nos convida a adentrar em conhecimentos advindos de vários seguimentos de nossa história nos quais ideias foram cunhadas sobre o nosso chão, carregando-o de uma força vital, isto é, existencial, que faz parte, queiramos ou não, de nosso acervo cultural a ser conhecido e reconhecido quando nos interessa pensar de verdade numa educação que nos enraíze ao mesmo tempo que nos liberte. Somos na verdade o resultado, assim como a possibilidade de combinação, de uma infinidade de tradições que devem ser entendidas como os diferentes “nós”, que nos constituem como humanidade. Diferentes línguas, concepções distintas do mundo, expressões artísticas singulares, constituem pontes entre os homens, os povos e os mundos. Somos vários, e é essa diversidade que nos caracteriza enquanto seres humanos. Ao reconhecermos modos criativos de viver e ver a vida, passamos a entender as diferentes culturas como um espaço de troca, de reflexão e circulação de saberes que nos completam enquanto aprofundamos o entendimento de quem somos.
Nesse sentido, o Brasil traz em seu território os passos de diferentes culturas que aqui encontraram um chão propício a uma mistura de povos que plasmou e vem plasmando o ser brasileiro. Somos uma cultura sincrética, um povo novo que, apesar de fruto de uma fusão de matrizes diferenciadas, se comporta como uma só gente, sem se apegar ao passado e aberto para o futuro, como dizia Darcy Ribeiro. Estudioso dos povos indígenas, ele os reverenciou como exímios conhecedores da natureza em seus mínimos detalhes, como uma gente capaz de bastar-se a si mesma, que agradecia a Deus o mundo ser tão bonito, existindo para gozar a vida. Eram autossuficientes, uma vez sabiam fazer tudo que necessitavam para viver.
A sabedoria ancestral dos nossos índios é passada de uma geração para outra por meio de iniciação e celebrações, trazendo uma dimensão do sagrado que só pode ser compreendida pela participação, uma vez que é somente através da vivência que a compreensão se faz e cria sentido. Nossos índios entendem que toda palavra possui um espírito e o nosso nome é uma alma provida de assento. “É uma vida entonada em uma forma”, como nos conta Kaka Werá. O ensinamento da tradição para eles começa sempre pelo nome das coisas e pelo modo como são nomeados.
Daniel Munduruku nos conta o que ouvia de seu avô em um tom de simplicidade: “Tudo está em harmonia com tudo; tudo está em tudo, e cada um é responsável por essa harmonia”, porque “não somos donos da teia da vida”. Essa é a maior contribuição que os povos da floresta deixaram para nós: a prática de ser uno com a natureza. Para eles, as tradições do Sol, da Lua e da Grande Mãe ensinam que tudo se desdobra de uma fonte única, formando uma trama sagrada de relações e interrelações, de modo que tudo se conecta com tudo. O pulsar de uma estrela à noite é o mesmo pulsar do coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo só, com ações interdependentes. Esse conceito só pode ser compreendido pelo coração, ou seja, pela natureza interna de cada um, assinala com extrema clareza outro importante índio brasileiro, Kaká Werá Jecupé.
Em quase todas as populações indígenas, as festas são ocasiões privilegiadas de celebração que marcam passagens entre diferentes momentos da vida, entre diferentes comunidades, assim como a comunicação entre o mundo espiritual e o humano, entre os vivos e os mortos, entre a floresta e a aldeia. Muitas dimensões da vida são mobilizadas por ocasião das festas como a confecção de adereços, pinturas corporais, instrumentos musicais, oferecimento e consumo de alimentos entre outras tantas coisas.
Todas as tradições ancestrais, diz Ailton Krenak, outra liderança indígena importante, possuem cantos e danças para levantar o Céu. Isso acontece porque, quando o peso fica muito grande sobre a vida na Terra, o Céu abaixa, e temos de cantar e dançar para suspendê-lo bem alto e ter força em torno da nossa existência. Os cantos têm esse poder. Washington Novais relata no trecho “Matriz Indígena” do dvd “O Povo Brasileiro,” sobre a obra de Darcy Ribeiro que: “Para o índio, não existe diferença entre a realidade acordada e o sonho. Tudo está entrelaçado. Há um espírito em cada coisa e sua arte tem o poder de extrair o pensamento de cada coisa. O índio não faz diferença entre o trabalho e a arte, cada objeto construído por eles está vinculado a um fazer onde a harmonia das cores e das formas é expressa com precisão e beleza”.
Essas considerações são importantes enquanto conhecimentos que devem estar presentes na formação dos professores para que eles possam identificar suas raízes e assumir a responsabilidade de serem continentes e transmissores dos traços culturais que compõem a história de seu país.
Durante muito tempo, os pedagogos viraram as costas para a singularidade cultural brasileira e produziram uma educação abstrata e fria, sem a força e o colorido de nossas raízes. Aprendizados preciosos poderão substituir o desconhecimento e o desrespeito com que a maioria de nossas escolas repassa para as crianças uma imagem caricatura de nossos índios, quando, na realidade, trata-se dos representantes de um forte braço de nossas raízes culturais. Há um vício em alguns brasileiros de olhar nossa história através de olhares de fora, como no caso da visão sobre os indígenas, formada principalmente pelo olhar europeu predominante na construção de nossa imagem sobre quem eram os primeiros habitantes de nossa terra.
Acreditamos que o século XXI traga essa reflexão para o campo da ética, da estética e dos direitos humanos, reflexão que, uma vez enriquecida com os trabalhos das próprias lideranças indígenas, confirme o reconhecimento dos valores universais contidos em suas tradições. Utilizamos no nosso próprio vocabulário contribuições significativas da língua tupi e nossa geografia é praticamente batizada por eles. Ora, se a língua, como diz Fernando Pessoa, é nossa pátria, nossa matriz indígena ajudou e ajuda a construí-la e, por isso, ocupa um lugar especial em nossa formação.
Em relação à educação, há muito que se aprender com a cultura indígena no que se refere ao respeito e à liberdade com que os adultos lidam com as crianças em suas comunidades. Angela Nunes, pedagoga e antropóloga moçambicana que participou e acompanhou as atividades da Casa Redonda com as crianças durante doze anos, entre as décadas de 1980 e 90, buscou ampliar os seus conhecimentos sobre a infância convivendo como estudante de antropologia numa comunidade indígena. Seu trabalho sobre a “Sociedade das Crianças Uwê-Xavante” merece ser lido como documento sobre a vida da criança indígena, abordando sua vivência cotidiana e suas brincadeiras. Tocando nos acordes da nossa matriz portuguesa, de um Portugal que foi a primeira nação do mundo, quem senão o professor Agostinho da Silva, considerado o maior pensador português do século XX, conhecedor do Brasil onde passou vinte e cinco anos participando da fundação de inúmeras universidades como a de Brasília, Paraíba, Santa Catarina, Goiás e o Centro Afro-Oriental da Universidade Federal da Bahia, quem senão ele poderia nos falar sobre o mito da “Criança Divina”?
Foi através dele que ouvimos falar pela primeira vez da presença desse mito nas manifestações populares brasileiras. Esse mito pertence a uma idade muito remota da humanidade, e tudo leva a crer que seja proveniente da pré-história portuguesa, tendo sido altamente manifestado e estabelecido em Portugal pela rainha Isabel, a “Santa”. Naquele período as festas pagãs eram realizadas durante os solstícios para celebrar as colheitas. Os povos se reuniam ao redor do fogo, da música, da dança e da comida para comungar seus valores materiais e espirituais. Em rituais de alegria, agradeciam a divindades da natureza pelos frutos colhidos e ao mesmo tempo, pediam por prosperidade e abundância para a colheita seguinte. As festas pagãs eram constantes entre povos de toda a Europa. A partir do século XIV, essas manifestações foram assimiladas pela Igreja católica e “vestidas” com sua simbologia.
A figura da Criança Divina ficou presente no culto português do Espírito Santo e foi levada nas naus e caravelas da descoberta para os novos mundos, chegando até o Brasil, onde ainda encontramos sua presença viva, assim como nos Açores. É nessa celebração, até hoje presente em nossa cultura, que uma criança é coroada Imperador do Mundo, distribuindo justiça e alimento para todos.
“A criança com sua qualidade de ser original tem, assim, um alto sentido nesse culto, marcando sua presença como sabedoria própria da inocência e pureza, a total plenitude da vida, um reino que afinal inaugurará o divino no humano como germe de um novo mundo, anunciando um tempo de fraternidade e liberdade, uma era ecumênica.” Ainda em suas palavras nos explica Agostinho da Silva: “O homem do futuro deverá ser como a criança que brinca, com alegria. Na era do Espírito Santo, o ser humano vai ver o mundo com os olhos de uma criança que vê uma estrela e quer pegá-la. Só que nessa época já teremos conhecimentos científicos para fazê-lo na prática. As escolas serão abertas a todos, não obrigatórias. Elas irão ensinar tudo o que o ser humano quer aprender... A maturidade do homem significará reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar”.
Os mitos são constituídos de símbolos que não foram inventados, eles são movimentados por forças que provêm de uma matriz que escapa à consciência e ao seu controle. O que nos importa aqui é o conhecimento de que esse arquétipo da criança divina cunha nossa terra em suas celebrações, sinalizando formas de expressão de nosso povo guardião da tradição, como forças vivas e atuantes que alimentam e sagram a nossa cultura.
O sagrado e o profano, como define Mircea Eliade, são entendidos como dois modos de ser do homem no mundo. São eles: o aspecto religioso, presente no modo de ser das sociedades arcaicas, e o modo de ser do homem moderno, destituído do sentimento de religiosidade. Esses dois modos de ser – o sagrado e o profano – implicam formas diferenciadas de o indivíduo situar-se no espaço, conceber o tempo e se relacionar com os elementos da natureza.
Antigamente, os símbolos eram vividos, não se refletia sobre eles. Poderíamos até pensar que a psique humana teria funções vivas antes de ser pensada pela consciência. E sendo assim esse mundo inconsciente, esse misterioso desconhecido tem seu modo próprio de se tornar presente, de se revelar à consciência através de intuições, devaneios, sonhos, principalmente no estado em que penetramos no tempo sem tempo que as crianças habitam com naturalidade.
As dimensões do sagrado podem transgredir muitas leis, pois se realizam na liberdade e exploram as potências do imaginário, entre as quais não são possíveis nem o cálculo nem a racionalização. O homem transita nesse lugar que redimensiona o tempo e espaço, através das festas e dos rituais, reencenando matrizes capazes de religar o homem à sua humanidade. Assim, o povo constrói sua história, sua ética e sua cultura. As fontes do sagrado são rebeldes e lutam contra a racionalização. Dessa forma, os mitos e os ritos são modos pelos quais o sagrado se manifesta nos folguedos, ou brinquedos, como são nomeadas as festas populares brasileiras.
Essas são celebrações míticas enquanto manifestações de uma escuta humana ao sentido, um modo de os homens retornarem à sua sacralidade numa celebração que os reúne para festejar cantando, tocando, dançando e orando a comunhão dos tempos. A presença do ritmo e da musicalidade no povo brasileiro aponta para um conhecimento ancestral de que o ritmo afirma aspirações coletivas criando uma relação de unidade. Dona Elza do Caroço, uma mulher brincante do Maranhão, expressa com muita propriedade a sua experiência enquanto sagra a vida cantando e dançando: “Minha alegria”, diz ela, “vem propriamente de mim. Comigo não tem tristeza, meu amor [ ....] Eu gosto de brincar. Eu brinco totalmente à vontade. É vontade, é vontade mesmo. Quando eu tô com vontade, eu mesmo mando bater, eu mesmo canto, eu mesmo danço. Aí mando encerrar, e tudo bem... Eu me divirto. Eu me alegro. Tristeza não paga dívida. A alegria leva tudo!”.
Essa singela experiência que ascende à alegria é o traço de união entre o céu e a terra, entre o corpo e a alma. Ela se dá num espaço e tempo que avançam por paisagens pouco exploradas revelando em nós algo que ainda não tem nome e que está em sintonia com a vida. Aqui a cultura se apresenta como um estado de ser em que se cria a beleza, se expressa a alegria e se manifesta o sentimento. Esse componente alegre e festivo presente dentro de nossa gente traduz o legado que recebemos dos grupos africanos que vieram para o Brasil trazendo uma cultura que remonta a tempos imemoriais e marca o começo da raça humana. As manifestações de alegria nata do espírito de seus povos foram cunhadas no Brasil através de sua música, suas danças, sua íntima conexão com a natureza e a religiosidade que impregna a totalidade de suas vidas.
Do século XVII ao XIX, aproximadamente seis milhões de africanos de várias etnias foram arrancados de suas terras e trazidos ao Brasil para trabalhar nas fazendas de cana-de-açúcar e plantação de fumo como escravos, sujeitando-se a prestar toda espécie de serviço: doméstico, rural e urbano. Sua força de trabalho permitiu a colonização brasileira.
O desenvolvimento do projeto colonial português ocorreu num longo ciclo escravista subjacente à realidade social brasileira sob diferentes manifestações discriminatórias que ainda pesam como marcas doloridas nos afrodescendentes brasileiros. Os africanos que para cá vieram contribuíram decisivamente para a construção do Brasil, edificando a sua economia, resistindo secularmente a um violento regime de opressão.
Ao som dos congos e do ritmo que impregnavam a variedade de toques de seus tambores, asseguraram corajosamente a sua identidade e adentraram por nossas terras atuando em todas as áreas da sociedade, seja no mundo do trabalho, da esfera religiosa, artística e cultural.
O traço mais marcante do legado africano a nós, brasileiros, é o sentido do sagrado permeando toda a vida comunitária baseada na união de bens, juntamente com a solidariedade, valor central de sua cultura. Essas características são ainda pouco compreendidas e valorizadas como elementos formadores do povo brasileiro.
Nossas músicas, danças e nossa religiosidade confirmam o elo vivo entre nós e o povo africano, em suas várias Áfricas. Como força viva de nossas raízes culturais, os africanos que para cá vieram sedimentaram em nossa terra o comportamento mais criativo do brasileiro. A diversidade de nossas manifestações culturais que perpassa todo o território nacional e, carregando a sensibilidade das várias matrizes que aqui se misturaram, formando este corpo brasileiro com prontidão para dançar, tocar, cantar, brincar e festejar, não pode ser esquecida pela escola brasileira. É da índole do nosso povo manifestar alegria, celebrar a confraternização e a solidariedade. Somos um povo brincante, alegre, criativo e comunicativo. Entre nós brasileiros, a criatividade é um patrimônio. Por que não assumir essas qualidades em sua verdade?
Afinal, criar não é fundamentalmente deixar que o mistério do universo se revele no mistério de nossa individualidade? Tocar a singularidade é simultaneamente buscar as raízes. Por que não nos dispormos a ser brasileiros, anunciando uma síntese nova a partir da força viva de nossas matrizes representadas pela presença dos povos indígenas, africanos, europeus e asiáticos?
É dentro desse espírito de reconhecimento e conhecimento de uma memória que cunha o tempo e de um sentido de pertencimento que cunha o nosso espaço existencial, que procuramos celebrar as festas cíclicas como um projeto que abrange toda a comunidade que participa da Casa Redonda. As celebrações ressignificam a dimensão sagrada dessas festas, confirmando a importância da alegria, da beleza e da confraternização, em que todos juntos, adultos e crianças, dançam, cantam, brincam e tocam “levantando o tempo”, como dizem nossos índios.
A festa é em sua verdade uma experiência do tempo, o instante de um acontecimento esperado por todos, finalizando os semestres e ritualizando a passagem das crianças que irão iniciar outra etapa da vida a partir dos sete anos de idade. A festa é também a possibilidade de ingressar as crianças no universo da cultura como base de desenvolvimento de uma sociedade. A educação e a cultura devem caminhar de mãos dadas. Sem o braço cultural, a educação não se cumpre como uma ação transformadora e formadora de consciência.
A FESTA DE SÃO JOÃO
Um celta dançando em volta da fogueira no início da civilização européia é a origem de uma das festas mais tradicionais do povo brasileiro. Nessa época do ano, “junho”, o Hemisfério Norte celebrava seus ritos agrícolas. As festas “juninas” para alguns, ou “joaninas” para outros, têm origem no período em que a humanidade se sedentarizou e passou a desenvolver um relacionamento com a terra, cultivando-a, dando início à agricultura. A vegetação passou a ser cuidada pelo homem que, simultaneamente a essa nova relação com a terra, foi aos poucos incorporando à consciência a existência de um tempo cíclico, marcado por períodos relacionados aos ritmos da Terra e aos ritmos do Céu; ritmos biológicos e cósmicos.
A noção de periodicidade nasceu com a consciência agrícola. A partir dessa prática humana de subsistência, o homem foi se dando conta da presença alternada de períodos de terra fértil e não fértil, período de arar e semear a terra , de florescimento e, de colheita. Na sua experiência do cultivo da terra, o ser humano foi se relacionando com esses processos e associando as novas percepções aos ciclos de sua própria vida.
Ao longo do tempo, através de sua relação com a natureza, o homem foi criando celebrações para os momentos que marcavam as passagens desse percurso cíclico. Estabeleceu-se assim uma forma de reverenciar sua ligação com esse ser, a Terra, através do qual ele mantinha a sua sobrevivência.
Cultos agrários foram surgindo, e neles se faziam presentes alegres rituais que anunciavam a colheita. Os ritos agrícolas sempre marcavam momentos culminantes a serem periodicamente festejados. Os celtas se relacionavam com o Sol, compreendendo-o como deus da fertilidade. Observando então o seu percurso, foram percebendo em seu movimento ascendente um período de dias mais longos e noites mais curtas, e em seu movimento descendente um período de dias mais curtos e noites mais longas. Passaram então a marcar a abertura das estações do verão e do inverno, e alguns povos identificaram esses períodos respectivamente como tempos mais luminosos ou de maior escuridão.
Depois de se afastar ao máximo da linha do Equador, o Sol parecia estacionar no céu por alguns dias, antes de iniciar o seu caminho de volta. Os celtas acreditavam que, nesse momento, as portas do céu se abriam e a alma dos mortos tinha oportunidade de visitar o reino dos vivos, aquecendo-se junto às fogueiras e se reconfortando com as homenagens prestadas pelos amigos e parentes.
Assim, dançar, cantar, beber e comer em volta de uma fogueira era, para os celtas, além de um prazer, uma reverência às almas amigas que eles acreditavam estar ao seu redor.
No Hemisfério Norte, com a florescência dos campos, no momento em que as sementes brotam e a vida já se restabelecia na natureza, celebrava-se o solstício de verão. Para marcar esta passagem, por volta do dia 24 de junho, na Europa havia a tradição de acender fogueiras nos lugares altos, dançar ao redor delas e saltar sobre as chamas quando se festejava a proximidade da colheita. Sacrifícios eram feitos para afastar os demônios que eles acreditavam ser responsáveis pela esterilidade, pestes nos cereais, estiagens.
Foram os portugueses do norte de Portugal, descendentes diretos dos celtas, que trouxeram a tradição para o Brasil. Ao longo dos séculos, a festa foi ganhando um tom brasileiro, assumindo características próprias, sem perder seu sentido simbólico. É esse sentido que religa a nossa Festa de São João às festas pagãs do fogo, que, por sua vez, se relacionavam ao Sol, o deus da fertilidade dos celtas.
Um caráter cristão foi atribuído à festa, mas não há dúvida de que a celebração vem de uma época muito anterior ao início da nossa era. Eram tradições tão fortes e importantes para o povo que a Igreja católica dos primeiros séculos, não conseguindo acabar com esse tipo de festa considerada pagã, criou para ela um significado cristão. São João é, portanto, o atributo cristão para esse dia que já era celebrado três mil anos antes de Cristo. São João foi o escolhido por ser considerado o santo cristão relacionado ao Sol.
O culto inicialmente dedicado a São João foi reinterpretado e enriquecido no Brasil com a contribuição de elementos indígenas e africanos. Diz a tradição que São João figura como um menino de cabelos encaracolados. Sendo muito fogueteiro e amante do ruído dos fogos, sua mãe Isabel, sempre o adormece nessa noite com receio de que ele participe dos festejos e acabe por incendiar o mundo.
Assim, o dia 24 de junho, dedicado pelos festejos religiosos brasileiros a São João, era anteriormente a data de celebração de um fenômeno astronômico proporcionado pelo Sol, o solstício de verão no Hemisfério Norte, a entrada do Sol no signo de Câncer.
As três grandes características das celebrações do solstício de verão, na Idade Média, eram as fogueiras, as procissões de tocha pelo campo e o costume de fazer a roda girar. Essa roda representava o trajeto do Sol que, tendo atingido nesse período o ponto mais alto da elíptica, começava gradativamente a descer.
A fogueira representava a fixação do Sol, a conservação da luz. Elas eram, e ainda são, preparadas nos pátios, nos campos e nas ruas, podendo se apresentar com o formato piramidal, quadrado, redondo ou cônico, e, em algumas regiões, são colocados pedaços de bambu para que surjam estalidos enquanto queimam.
Há culturas em que se costuma queimar ervas próximo às fogueiras, para soltar uma fumaça espessa com odor agradável de camomila, poejo, tomilho e arruda. As pessoas se expõem à fumaça e a encaminham em direção aos campos, pois acreditam que seja dotada de propriedades benéficas. Em geral, as fogueiras são acesas depois de o mastro ser levantado pelo festeiro.
Os mastros com as imagens dos santos também têm origem na tradição celta. Eles reproduzem a crença nas árvores sagradas, símbolo da ligação entre a Terra e o Céu. Para atingir o Céu é necessário um enorme sacrifício representado, por exemplo, na brincadeira de escalar o pau de sebo e conquistar uma prenda. Os mastros no Brasil são enfeitados, têm a bandeira do santo no topo e são levantados seguindo a intenção de fertilizar a Terra para que esta possa produzir frutos em abundância. Eles nos lembram dos cultos agrários que prestavam homenagem às forças vivas da natureza e da fecundação da semente. A bandeira do santo, no alto do mastro, informa que ele está presente em sua festa com frutos, flores e fitas, protegendo a comunhão dos homens com a natureza.
Na península Ibérica, o culto a São João é um dos mais antigos. De lá recebemos o hábito desses festejos carregados de brincadeiras, adivinhações, superstições, crendices e agouros, por certo advindos da convergência de vários cultos desaparecidos e de práticas iniciáticas confundidas e mantidas sob o festejo cristão.
“São muitos os São João... Há o São João Batista das águas do Jordão. O São João Xangô que os índios aprenderam a gostar brincando de pular fogueiras em noites de Jaci e dias de Coaraci. Há o São João menino que acorda o povo de madrugada para um batismo de alegria. Todos na verdade, um só. Santo, sagrado e pagão, solto no mundo com a sua bandeira de dançarino, a serviço do Homem e de Deus”
Antonio Carlos Madureira e Francisco Assis, texto do CD Bandeira de São João
Reconhecendo esses vestígios e redescobrindo os significados mais profundos de nossas festas populares, nos dispomos, junto às crianças, a retomar essa celebração, convidando-as a acender uma fogueira, a partilhar os frutos da Terra, resgatando e reincorporando a comunhão fraterna entre o homem e a natureza, tão necessária ao nosso tempo.
Procurar a origem da festa de São João foi nosso primeiro passo, e, gradativamente,fomos nos inteirando dos diferentes costumes e modalidades de celebrações que aconteciam ao longo do território brasileiro. O reconhecimento desse caráter múltiplo de nossa cultura e a identificação dessa festa como manifestação de uma maneira de o homem conviver com a natureza, descobrindo seus ritmos e ciclos em seu percurso de sobrevivência, nos trouxe um sentido de pertencimento a uma dimensão coletiva que conserva qualidades importantes do passado e como memória nos projeta para o futuro.
Compartilhar essa festa com as crianças significa nos recolocar em contato com a presença desse tempo cíclico, sazonal, renovando aspectos importantes de nossas raízes e, principalmente, nos propondo a compartilhar de um coletivo que nos convida a viver uma experiência comunitária que reúne crianças, jovens, adultos e idosos numa mesma celebração ao redor da fogueira. Distinguimos três momentos importantes no decorrer dessa festa e chamamos o primeiro de:
O TEMPO DA PREPARAÇÃO
Nos quinze ou vinte dias que antecedem a festa, damos início a um programa de atividades que envolvem artes plásticas, música e dança. Até este período do ano, as crianças dispunham de total liberdade nas várias linguagens expressivas colocadas a sua disposição. Com a aproximação da festa, as crianças aprendem a utilizar as mãos na confecção de ornamentos que são característicos dessa celebração.
A cada ano, desenvolvemos pesquisas sobre distintas manifestações populares do Brasil, ampliando nosso repertório através de livros, imagens e lembranças de nossa infância. Vencida essa primeira etapa de informação oral e visual, são escolhidos os elementos e os materiais com os quais, juntos, crianças e professores construirão todos os ornamentos presentes no dia da festa. Nessa fase, a Casa Redonda se transforma numa grande oficina, onde o recorte, a colagem, a dobradura, a pintura e o desenho são atividades presentes.
O papel de seda e o papel crepom coloridos passam a ser os elementos mais presentes no cotidiano das crianças. Lanternas, bandeirinhas, pau de fitas, flores, saquinhos de pipoca, lixeiras, chapéus, coroas, toalhinhas de papel para as bandejas de doces e frutas, o andor do santo festejado, o mastro, o pau de sebo, convites para as famílias, as tochas, o candeeiro, as vestimentas anuais do boi e das burrinhas vão surgindo, passo a passo, das mãos das crianças. Cada uma delas, além de ampliar seu repertório de habilidades dentro de uma estética que permeia a nossa cultura, aprende também nesse processo a compartilhar e contribuir para a realização de um evento que conta com a participação de toda a comunidade da Casa Redonda.
Quanto mais se aproxima o dia da festa, mais intensamente as crianças vão penetrando e se apropriando desse fazer coletivo, convivendo com o importante aprendizado da cooperação: todos colaborando para um fim comum. Acreditamos ser esse o ponto vital dessa aprendizagem, a participação real, ativa e natural tecida em meio à perspectiva de um momento que se aproxima, em que uma dimensão coletiva será celebrada.
As crianças mais velhas, que participaram dessa festa em anos anteriores, contribuem com novas ideias para que a cada ano ela se torne mais bonita. Por volta dos seis e sete anos, elas assumem o papel de festeiros, os anfitriões da festa, aqueles que carregarão o fogo sob a forma de tocha para acender a fogueira às seis da tarde na presença de todos os que vierem partilhar com eles esse momento. A importância e a distinção desse papel desenvolve uma atitude de compenetração, incorporando o sentido de colaboração e a responsabilidade de passar a experiência para os menores.
A forma que encontramos para inserir os pais nessa celebração foi convidando-os a participar na confecção dos mastros e demais ornamentos durante uma manhã junto com as crianças na véspera da festa. Esse é um momento prazeroso de cooperação criativa entre crianças, pais, professores e funcionários, todos trabalhando com as mãos em meio às canções de Luiz Gonzaga e do repertório de músicas próprias à festa de São João que vão sendo incorporadas ao repertório musical das crianças e dos adultos.
Como em nossas festas populares, em que todos participam e colaboram para que a celebração ocorra de maneira harmoniosa, essa experiência de confraternização e desenvolvimento de trabalhos manuais feitos por todos gera uma qualidade de energia que irradia bem-estar, bom humor e a alegria que se estende por toda a festa, criando uma atmosfera amorosa sobre todos que dela participam. A presença dos pais tem crescido a cada ano, tornando essa manhã especial e aguardada pelas famílias. Isso tem nos apontado a necessidade que os próprios adultos têm de se reunir em atividades grupais, rompendo com a estrutura do seu cotidiano e se deixando conduzir por experiências significativas.
A recriação dessa festa é o meio de tocarmos sensivelmente as crianças e as famílias, colocá-los em contato com a beleza, a liberdade e a simplicidade, assim como nosso povo organiza suas celebrações nos apresentando uma cultura viva, enraizada num tempo que tem história para contar. Diversas personagens acompanham essa festividade, sendo o boi, do Bumba-meu-boi, aquele que mais encanta as crianças. Esse boi teve sua origem no ciclo econômico do gado e recebeu influência das raízes indígena, africana e portuguesa.
Já a Burrinha, que participava da Festa de Reis no dia 6 de janeiro e convergiu para o Bumba-meu-boi, aparece dançando ao som das cantigas. A cada ano, muitas Burrinhas são confeccionadas pelas crianças junto com os professores e desfilam dançando na festa como um brinquedo que alegra a todos. O Jaraguá, mais um dos personagens do Boi de Mamão, de Santa Catarina, e também do reisado de Guarujá, em São Paulo, gosta de dançar misturado ao Boi, às Burrinhas e aos palhaços que sempre se encontram presentes nos folguedos brasileiros como o Cavalo-marinho e o Bumba-meu-boi, trazendo sua qualidade brincante.
No dia da festa, três horas antes do início, as crianças chegam para arrumar o espaço, utilizando todos os enfeites que conseguiram fazer e que foram guardados para o grande momento da celebração. Essa ornamentação é mais um momento de trabalho coletivo, feita por crianças, professores, ex-alunos, alguns auxiliares e estagiários que se dispõem a participar da festa e vão ajudando na construção da fogueira e na decoração do espaço.
Buscar a lenha e levá-la até o local onde será construída a fogueira é tarefa de crianças e professores, assim como a colocação dos enfeites nas árvores. As comidas e bebidas típicas do São João são preparadas pelas famílias e pela Casa Redonda, cabendo às crianças arrumá-las nos pratos e nas mesas, uma vez que elas próprias servirão os convidados. Milho cozido, milho assado, canjica, mungunzá, paçoca, amendoim cozido, amendoim assado, pé de moleque, mexerica, laranja, quentão, limonada e diferentes tipos de bolos fazem parte da mesa farta partilhada com todos. As crianças entram nesse processo de arrumação do espaço onde acontecerá a festa contagiadas pelo desafio de estarem todas juntas, se reconhecendo na diversidade de enfeites que conseguiram realizar. Animadas com o resultado do trabalho desenvolvido por todos, aguardam o momento de chegada das famílias e, dos convidados, prontos para iniciar a brincadeira. Em seguida à preparação do local, aguarda-se o momento da festa propriamente dita.
O TEMPO DA CERIMÔNIA
“Conta a lenda que São João adormece durante a noite de sua festa porque se ele estivesse acordado, vendo o clarão das fogueiras acesas em sua honra, não resistiria ao desejo de descer do céu, e o mundo arderia em fogo.” Mircea Eliade
Esse momento solene caracteriza-se pela presença de todos os convidados ao redor da fogueira aguardando o cortejo das crianças que dará início à festa. Com suas lanternas iluminadas, as crianças descem a ladeira em cortejo cantando ao som dos tambores, conduzindo a bandeira e o andor do santo em direção à fogueira.
Antes de ser iniciada a procissão das lanternas, os pais que estão ao redor da fogueira vão retirando de cima dela fitas de papel crepom em que estão assinalados os pedidos que as crianças fizeram a São João. Comumente, esses pedidos se referem aos temas trabalhados ao longo da preparação da festa sobre o seu significado, traduzido numa atitude de respeito à natureza e de gratidão a tudo o que a Terra oferece ao homem como possibilidade de subsistência.
As frases em geral se referem a agradecimentos pelas frutas e flores produzidas pela Terra, pedidos de proteção aos rios para que não sejam poluídos, que às florestas não tenham tantas árvores cortadas, que haja alimento para todo mundo, que não haja brigas nem guerras. Os pais leem esses pedidos em voz alta, diante da fogueira, e, a partir deste momento, as crianças dão início ao cortejo, embalado pelo som de tambores e das canções cantadas por todos.
Nesse momento, os festeiros, as crianças mais velhas que construíram suas próprias tochas, se posicionam compenetradas diante da fogueira e iniciam o rito de acendê-la, acompanhadas pelas músicas, pelos tambores e pelos vivas que vão partindo espontaneamente das crianças e dos pais.
A fogueira, entremeada de ervas perfumadas, começa a queimar, espalhando um aroma agradável por todo o local, relembrando a purificação que os antigos faziam para proteger suas plantações dos insetos e das pestes.
É um momento solene que ritualiza a presença do fogo como o elemento festejado, representando o Sol, o astro que nos ilumina e nos aquece, símbolo significativo dessa festa. Finalmente, guiados pelo som dos tambores, vibrando com o corpo e a alma, clamando dádivas ou agradecendo os grãos que a Terra nos oferece, iniciamos o terceiro momento da festa.
O TEMPO DA CELEBRAÇÃO
Esse é o momento especial que reúne todos, gerando a alegria irradiada em meio à música, danças e brincadeiras. O precioso instante que retorna a cada ano em um ritual que garante na memória de cada um a experiência do tempo sem tempo, conhecido porque vivido no cotidiano das crianças. A festa tem em si esse caráter de criar uma experiência do tempo, como se fosse a véspera permanente de um acontecimento muito esperado por todos e que tem seu “instante” de realização plena. As crianças a cada vez criam e recriam danças com a presença do Boi, das Burrinhas e de outros personagens que são introduzidos na festa como elementos nascidos do próprio imaginário delas. Ao som da música, surgem as quadrilhas, a dança do candeeiro, a dança do pau de fitas, a subida no pau de sebo e outras brincadeiras que vão se desenrolando ao longo da noite. Para encerrar a celebração, há uma apresentação das rodas de fogo, um ritual nascido da insistência das crianças maiores pela presença dos fogos de artifício na festa.
A sensibilidade das crianças menores ao barulho produzido por esses fogos nos levou a pensar numa maneira de as crianças mais velhas poderem participar da experiência com o fogo, sem que isso produzisse medo nas pequenas.
Observando o uso da palha de aço como uma brincadeira das crianças da periferia de Brasília durante uma festa de São João, tivemos a ideia de usar esse material ajustando-o a uma possibilidade de as crianças poderem manejá-lo sem perigo.
Criamos as varas de bambu em que tiras de palha de aço trançadas são amarradas na extremidade. Com o movimento giratório das varas manejadas pelas crianças junto com os professores, há um efeito luminoso que se transforma em um bonito espetáculo pirotécnico assistido pelos pais e pelas demais crianças sem que ocorra nenhum risco e nenhum barulho, a não ser a vibração e os aplausos da platéia.
Esse momento se torna uma conquista das crianças maiores, que passam por uma espécie de iniciação ao elemento fogo, desde o início, em que carregam a tocha para acender a fogueira, até sua participação final, na apresentação dos fogos, cumprindo-se nesses rituais uma abertura em direção a um novo ciclo de amadurecimento que se inicia aos sete anos.
Noite adentro, embalados pelos sons dos sanfoneiros, todos em alegre comunhão dançam e cantam até o sono apontar os primeiros sinais do fim da festa.
Como diz Mircea Eliade: “Algumas pessoas julgam que nessa noite, precisamente à meia-noite, os céus se abrem. Não percebo bem como podiam eles se abrir, mas diz-se: na noite de São João os céus abrem-se. Talvez se abram só para quem sabe ver”.
A FESTA DE ESTRELA
“Minha Senhora Dona:
Uma criança nasceu, o mundo tornou a começar.”
Guimarães Rosa
Legado português, o culto ao menino Deus é encontrado em todo o território nacional, seja nas festas do Divino, durante as quais um menino é coroado rei, seja nas várias formas de pastoris e presépios que se realizam durante o ciclo das festas do Natal.
Em algumas regiões do Brasil, o presépio é também chamado de “Baile do Menino Deus”, quando a festa se estende durante toda a noite até o amanhecer, com cantos, danças, recitações de loas, representações ao som de sanfonas, pandeiros e as palmas marcando o ritmo da alegria em louvação ao menino. O presépio, ou a lapinha, em outras regiões, é o nome dado à construção do espaço sagrado onde se realiza a “Louvação ao menino”, símbolo da esperança, da alegria, da liberdade, do futuro, do vir a ser, reverenciado dentro do espírito de um Natal brasileiro. Através do aprendizado de cantigas e loas, da confecção de adereços e ornamentos em que a linguagem plástica e a dança se fazem presentes, o presépio é entremeado por momentos em que a alegria, a espontaneidade, a cooperação e a compenetração são vivenciadas e compartilhadas por crianças e adultos que participam dessa experiência.
Essas celebrações são festas da cultura popular, tradição que traz um significado profundo por ser representativo de uma expressão da alma do povo que habitando esta terra brasileira, simboliza em suas manifestações de caráter coletivo o sentido da vida. A experiência de recriação do presépio com as crianças não significa a passagem a um ato religioso, mas se insere numa maneira de compartilhar sensivelmente manifestações culturais que nos aproximam da dimensão que sagra a vida, aflorando sentimentos de alegria, ternura e comunhão que estão enraizados na tradição do nosso povo.
Nas palavras de Antonio Nóbrega, podemos compreender o sentimento que brota da alma de um artista que aprendeu a escutar o Brasil em diferentes manifestações de sua cultura popular:
[...] pressinto que os homens estão ficando muito duros, e o mundo, muito triste. A arte e os artistas populares me mostraram que, a despeito desses dias de agonia, ainda se pode esperançar um mundo mais justo, onde não se avilte a beleza e onde as crianças não tenham que mendigar o reino do céu. De minha parte, espero permanecer fiel a esse ensinamento profundo. E se em algum momento dessa brincadeira eu for capaz de refletir o espírito do povo que somos, me sentirei revigorado para prosseguir nesta estrada de pó, sonho e enigma que me regressa ao Divino do meu povo.”
Foi na década de 1980, em Salvador, que, trabalhando junto com Lydia Hortelio, tive a oportunidade de conhecer sua pesquisa sobre o presépio ou o Baile do Menino Deus, como se realizava na fazenda Grota Funda e no seu entorno na zona rural do município de Serrinha, na Bahia. A oportunidade de compartilhar a preparação e apresentação desse presépio com crianças que participavam de um projeto de educação no Parque da Cidade, em Salvador, me fez compreender a importância de uma educação focada em nossa cultura. Como diz a Lydia: “precisamos afirmar o Brasil desenvolvendo uma educação que venha responder mais verdadeiramente aos anseios da alma brasileira”.
Em seguida, participamos aqui na Casa Redonda de uma oficina para educadores em que Lydia nos apresentou e construiu conosco todos os passos que envolvem a preparação e realização dessa tradição, hoje relatada por ela em um belo livro intitulado: O Presépio ou o Baile do Menino Deus: um Natal brasileiro.
Na Casa Redonda, ao longo dos anos, essa celebração vem sustentando o caminho de afirmar nossas raízes, acrescidas de outras experiências presentes na memória de nossa infância e nas contribuições trazidas por Lucilene Silva, professora da Casa Redonda, que vem pesquisando e recolhendo manifestações culturais vivas em diversas regiões do Brasil. Com a preocupação de reconstruir esse presépio adequando o máximo possível à participação ativa das crianças pequenas entre dois e seis anos, foi surgindo espontaneamente um percurso dessa celebração traduzindo uma forma de acontecer própria da comunidade da Casa Redonda, garantindo os princípios fundamentais de nossas raízes.
A realização do presépio envolve várias atividades e acontece ao longo de um mês de preparação dentro de um ritmo adequado. Naturalmente, sem atropelamento, vão ocorrendo o aprendizado das músicas, das danças e evoluções, a confecção dos objetos que irão fazer parte da construção da lapinha, a escolha dos personagens e até mesmo a escolha do espaço onde acontecerá o Baile do Menino Deus. Assim como a festa de São João, essa celebração do final do ano que passou a ser nomeada pelas crianças como a Festa da Estrela traz o caráter da construção coletiva, em que todos juntos colaboram para a realização de algo que resulta num momento de comunhão e alegria: a festa.
Escolhido o lugar onde será construído o Presépio, as crianças rearrumam o espaço interno da Casa Redonda, deixando uma área livre para a montagem do mesmo. Em geral, as crianças de quatro, cinco e seis anos realizam essa tarefa, ajudadas pelas menores que vão se iniciando na aprendizagem dessa construção. É um momento que privilegia a oportunidade de cooperação entre as crianças. Uma vez liberada a área, damos início à construção do céu que define o fundo do cenário sob o qual será construída uma cidade, concretizando o lugar onde a criança estará presente, como conta a história do Menino Jesus recriada pela imaginação das crianças. Em grupos, elas se apropriam do pincel, do rolinho e da tinta azul e, sobre o papel branco disposto no chão, iniciam a tarefa de pintar o céu que, depois de secar ao sol, é levado para dentro de casa.
Colocado o céu na parede, em seu devido lugar, as crianças passam para um momento de criatividade, ornamentando-o com a colocação de estrelas, sol, lua, nuvens, planetas, cometas. A cada ano, o céu segue o imaginário das crianças e algumas consultam livros para desenhar planetas, estrelas cadentes ou constelações de acordo com suas pesquisas. Dependendo do grupo de crianças, o céu se apresenta sob diferentes paisagens. Podemos observar essas diferenças de acordo com a presença de um maior número de meninas ou meninos. Nos anos em que as crianças mais velhas são, na maioria meninas, o céu se enche de estrelas, de fadas, de anjos, destacando-se do céu dos meninos em que se encontram presentes aviões, helicópteros, naves espaciais, extraterrestres, satélites e foguetes indo em direção a planetas como Marte, Júpiter, Saturno.
Na construção do céu é preciso colocar uma escada para que as crianças alcancem uma certa altura, e isso se torna um desafio para os maiores, que se distinguem nessas habilidades, sendo mais exigidos em sua capacidade de atenção, coragem e destreza. Ao terminar a construção do cenário do céu, em que sempre estão presentes um grande sol e uma lua desenhada por eles, as crianças iniciam a construção de uma cidade na qual imagens do seu cotidiano vão sendo representadas.
Para isso, uma estrutura de caixotes é construída, definindo planos diferentes, recobertos de papel pardo amassado por eles, para melhor representar a Terra com suas montanhas e vales. O desenho, o recorte, a colagem e a modelagem com materiais específicos como papel laminado, purpurina e brocal são ativados e procurados insistentemente pelas crianças no período de montagem da cidade.
Assim, elas vão colorindo diferentes tipos de casas que podem ser construídas também com argila e madeira e colocadas nos devidos lugares. Parte delas, naturalmente, a vontade e a atenção para fazer tudo com muito cuidado, que recorrem às purpurinas e aos brilhos como se a luminosidade tivesse um papel importante nessa construção, tão diferente do clima da paisagem plástica do São João.
Enquanto o São João conduz a uma atmosfera mais dionisíaca de expansão e coloridos fortes, a celebração do Natal traz uma qualidade singela, imprimindo uma atitude mais concentrada dos fazeres. Soltando a imaginação, as crianças vão construindo um lugar habitado, sob um céu estrelado, marcando o local onde se encontra a Sagrada Família, e “a criança nascida” sob a luminosidade de um cometa que, como estrela-guia, não pode faltar.
O cenário vai brotando num crescente, configurando o imaginário das crianças que, individualmente ou agrupadas, vão agregando aqui e ali representações de suas experiências cotidianas. A cada dia cresce o número de crianças que compartilham da realização do presépio trazendo suas criações cada vez mais caprichadas e bonitas, feitas com as próprias mãos numa atmosfera de cooperação e contentamento pelo resultado que vai se delineando. Os detalhes começam a ser trabalhados, agregando elementos que passam a narrar algumas histórias, aparecendo animais e personagens que vão introduzindo vida ao cenário.
Um rio que corre da montanha para um lago atravessando o presépio traz o elemento água como presença significativa. No trajeto desse rio surgem cachoeiras, pontes, barcos, e, no dia da celebração, algumas crianças trazem girinos, peixinhos e às vezes pequenas tartarugas para colocar no lago. Todas essas atividades acontecem durante duas semanas numa prática coletiva e criativa entre crianças e professores. Essa construção do presépio acontece em clima de segredo para os pais, revelando-se apenas no dia da festa que finaliza o ano letivo. Paralelamente a essa construção, as crianças estão aprendendo as canções, escolhendo suas loas, descobrindo e montando as danças e oferendas que farão parte da Louvação à Criança. Dessa forma, são iniciadas a cantar e recitar versos do repertório popular do Baile Pastoril como mais uma aprendizagem do universo da cultura brasileira.
Como nas festas juninas, os pais são convidados a compartilhar o aprendizado das músicas que serão cantadas junto com as crianças durante a festa. Antes da celebração, os pais recebem um texto em que relatamos o significado dessa celebração, destacando o aspecto da “Louvação de uma Criança” como a manifestação de valores presentes na tradição da festa de Natal brasileira. É importante essa reflexão para que haja compreensão de todos os pais de que estamos todos ali expressando uma reverência à Criança Divina: o ser que, se entregando à gratuidade da vida, carrega em si o arquétipo da criança eterna, da criança nova como embrião do futuro.
“Mandado de DeusDo céu desceu o Menino Os que por oculta ciência De tudo souberam Seus preciosos presentes O Menino recebe-os O colo A mãe O Universo.” Guimarães Rosa
Ao longo desses anos, o presépio foi imprimindo em nossa realidade um espaço onde convivemos com crianças e suas famílias numa atmosfera de celebração do Natal como símbolo que carrega a representação da trindade: pai, mãe e filho. As crianças se encontram ainda muito próximas da relação com os pais e, naturalmente, as indagações sobre quem eram os pais dessa criança vão surgindo. Logo a história sobre o Natal tomou a forma de uma representação em que os personagens de Maria, José, os Anjos, os Reis Magos, os pastores, as pastoras e os animais que acolhem o nascimento do Deus menino encantaram e tocaram a sensibilidade das crianças. Assim como o Presépio vai sendo construído passo a passo por eles, a representação da Louvação à Criança Divina vai sendo vivida dia a dia até chegar a manhã da festa, de acordo com a compreensão de cada um. Os espaços escolhidos são determinados pelas crianças em função do enredo criado ao longo do tempo de preparação. Cada um dentro do seu ritmo e de sua imaginação participa de uma criação coletiva. Desta forma a cerimônia reflete a maneira como o Natal foi compreendido pelo grupo de crianças daquele ano.
Há anos em que a presença dos “anjos” ganha força e, nesse caso, a maior árvore da escola, conhecida como a Árvore Mãe passa a ser o cenário que favorece a colocação dos anjos nas alturas. Há anos em que o cenário acontece em uma área que se assemelha a uma gruta, imprimindo um caráter de recolhimento à louvação. Houve um ano em que uma barca surgiu como cenário do Presépio, em função do envolvimento das crianças com a canção do repertório da música tradicional da infância “Vamos, Maninha, vamos”, aprendida com minha mãe.
“Vamos, maninha, vamos À praia passear. Vamos ver a barca nova Que do céu caiu ao mar. Nossa senhora vai dentro Os anjinhos a remar Rema, rema, remadores Que essas águas são de flores.”
Na construção dos presépios tradicionais montados nas casas das famílias que mantinham a tradição de confeccioná-las havia uma participação comunitária em que crianças, jovens, adultos e velhos se envolviam na tarefa de criar cenários e personagens de acordo com a atmosfera da época. Muitos deles possuíam recursos que colocavam em movimento tanto os personagens quanto os elementos que traduziam as forças da natureza, estando sempre presente nos presépios a terra, a água, o fogo e o ar com suas devidas representações. Muitas famílias ainda mantêm essa tradição em diversos lugares do Brasil. As variações ou reapresentações do Auto de Natal, que envolve o Presépio na Casa Redonda, acontecem a partir da experiência das crianças em sua relação com o universo da cultura popular brasileira.
Na escolha dos personagens do presépio a figura de José costuma não gerar tantos conflitos pela presença de outras figuras masculinas como opção. Os meninos em geral assumem as figuras de animais, Reis Magos, guardiões da natureza, tocadores e anjos. As meninas por outro lado, disputam o lugar da Maria porque todas querem ficar perto da criança de verdade que irá participar da cena. O critério da mais velha predomina como solução para o conflito, muito embora ao se realizar a cena todos se aproximem da criança envolvendo-a com gestos de ternura e proteção. A cada ano, além da recitação das loas, elas escolhem como oferenda à criança, brincadeiras significativas do semestre compondo coreografias próprias. Houve um ano, por exemplo, em que a brincadeira de corda vinha sendo recorrente e ampliou os desafios corporais, de modo que as crianças decidiram mostrar suas habilidades ao Menino. O mesmo acontece com a variedade de brincadeiras de roda, de brincadeiras com as mãos que fazem parte do repertório vivido durante o ano e passam a ser oferecidas à como presentes à criança que está no berço.
“Tão de joelhos Quanto os pastores Os Anjos As Estrelas A Virgem Inclinam-se para o Menino Capazes de guardar No exíguo espaço Para sempre A grandeza daquele momento.” Guimarães Rosa
No dia da festa, último do ano letivo, as crianças, entusiasmadas com o que conseguiram realizar, enfeitam o Presépio com flores. Após um momento de conversa que antecede a entrada dos pais para a celebração, as crianças mais velhas relatam para as mais novas o que mais gostaram de brincar e aprender durante os anos que conviveram juntas na Casa Redonda. Compenetrada, a partir desse momento, cada uma acende a sua vela na lapinha, iluminando o cenário e dando inicio à cerimônia.
Ritualizar o acender das velas significou um momento tão importante para as crianças que logo foi manifestada por elas a vontade de que os pais também pudessem fazê-lo. Solucionamos esse pedido com a criação de uma guirlanda com o número de velas proporcional ao número de pais instalados no centro da Casa Redonda, uma vez que era difícil colocar tantas velas dentro do Presépio. Em 1986, quando foi anunciado o aparecimento do cometa Halley nos céus do Brasil, precedido por uma chuva de estrelas, o grupo de crianças dessa época logo imaginou que poderia fazer uma chuva de estrelas sobre a cabeça dos pais.
Como é próprio de todas as crianças, sintonizadas com os fenômenos que as rodeiam, foi inaugurada essa cerimônia que vem se repetindo ao longo desses anos como um ritual nascido da interação entre crianças e professores e que culmina com a presença dos pais. Depois de acenderem as velas, estes recebem das crianças os papéis picados representando a chuva de estrelas derramada sobre eles pelas mãos dos próprios filhos. O encantamento desse momento diante de uma obra coletiva, construída por eles ao longo do mês e reverenciada pelos pais na solenidade da cerimônia, confirma uma experiência viva que consagra a todos: é a gratidão à vida vivida que as crianças, como verdadeiras mensageiras do novo, derramam sobres os pais na forma de estrelas.
O encontro dos filhos com os pais após a chuva de estrelas permanece imantado pela energia sutil da cerimônia. Aos poucos, dentro desse espírito, as crianças vão se dirigindo ao espaço escolhido para a realização do Presépio vivo. A experiência de recriação do presépio nessa forma brasileira, afirmando a estrutura original de “louvação ao Menino”, revela-se para todos nós numa compreensão da índole do povo brasileiro, presente nas manifestações populares em que ainda pulsa uma memória coletiva, conservando os substratos de uma ordem que, ao transcender a própria manifestação popular, nos reporta a dados essenciais do percurso do Homem entre o Céu e a Terra. É a capacidade da criança de maravilhar-se que suspende o tempo e reúne a todos numa alegre confraternização. Terminada essa celebração das crianças, uma ceia oferecida pelos pais consagra pelo alimento o encontro de todos. A ornamentação dessa comunhão fraternal é a surpresa organizada pelos pais em gratidão aos anos do convívio harmonioso compartilhado.
Atrás de cada papel, atrás de cada gesto, atrás de cada canto, atrás de cada objeto colocado no lugar certo, atrás de cada pratinho de comida, encontram-se mãos amorosas que comungaram e comungam, cada uma à sua maneira, da construção de uma educação que sabe celebrar a vida, porque conhece e compreende a linguagem do coração, aquela que nos alegra e nos faz continuar acreditando que é possível uma educação a favor da vida.
Nenhum texto relacionado